Cabral só observa, escondido atrás do Fusca azul-pavão. Lá dentro, a empregada tenta pelo menos salvar seus pertences. Mas o fogo não dá trégua. O Coronel já desistiu de tudo; aguarda a destruição da sua casa sentado à beira da piscina. Mandou até cancelar o chamado dos bombeiros, feito há mais de duas horas. Aliás, o comandante do Esquadrão já sabe que terá de buscar um novo emprego, longe da cidadezinha.
As primeiras telhas começam a desmoronar do terceiro andar, mas isso não demove a empregada de sua busca. Foi preciso o jardineiro Teobaldo entrar na casa e tirá-la a força, antes que o pior acontecesse. Ela sai se debatendo, chorando a perda do aparelho de vídeo que comprara numa promoção. Cabral só observa, escondido atrás do Fusca azul-pavão.
De repente o imenso coqueiro do jardim de inverno despenca sobre a ante-sala e divide a casa ao meio. D. Soraia, mulher do Coronel, faz as primeiras ligações para a loja de eletrodomésticos. Diz que precisa de uma geladeira nova, de preferência de alumínio para manter a decoração antiga. Ela parece fascinada com o fogo consumindo umas pinturas de uma tia do marido – que ela dizia serem hor-rí-veis. Já Cabral ainda observa, agora deitado sobre o Fusca azul-pavão.
E então o crepúsculo vespertino chega, junto com um primo chato do Coronel – que soube do acidente ouvindo a frequência da polícia. Inútil: paredes começam a desmoronar e pequenas explosões aqui e acolá dão um movimento dançante ao incêndio. Não há nada mais que se possa fazer além de olhar e admirar a força da natureza. Todos parecem hipnotizados com a beleza do fogo, cada vez mais contrastante com a mistura de cores em que se transforma o céu. Todos, menos um: lembrou-se Cabral das chaves do fusquinha, esquecidas sobre a penteadeira do quarto da mãe. "Catzo!"
Ele sai correndo em direção à casa. Teobaldo ainda tenta segurá-lo, mas Cabral é o quarterback da equipe de futebol americano da cidade: desvia do jardineiro sem nenhum esforço. D. Soraia fica desesperada; quase tem um enfarte quando o filho adentra as chamas. Agora Cabral sobe correndo a escadaria central, mostrando habilidade ao desviar das telhas que continuam a cair. Num salto impressionante, transpõe o piano, um dos poucos móveis ainda não consumido pelas chamas. Chega ao quarto dos pais em menos de 12 segundos. Um recorde.
No quarto, o fogo é soberano. Começara ali, no banheiro da suíte, depois de um curto-circuito no aparelho de depilação de D. Soraia. Cabral apertou os olhos. Agora o objetivo não era apenas resgatar a chave, e sim sair vivo daquela aventura. Se tivesse pensado antes, sabia que qualquer mecânico abre um Fusca com a unha mais comprida deixada no dedo mínimo da mão esquerda. O fogo começa a aumentar. Atinge uma escrivaninha de mogno que acabara de ser envernizada.
O rapaz está agora cercado pelas chamas. A fumaça não lhe deixa abrir os olhos. Começa a correr enlouquecidamente pelo quarto. Cabral cai. É o fim. Os pêlos do tornozelo dele grudaram na colcha de cheline.
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