sábado, 13 de março de 2010

Atropelaram uma marmota

Atropelaram uma marmota. Por mais banal que possa parecer, foi a primeira vez na história que isso aconteceu. A comoção foi geral. Quando os jornais anunciaram que uma marmota havia sido atropelada na altura do quilômetro 120 da Rodovia Marechal Polaco, até o Greenpeace apareceu. Onde já se viu, atropelar uma marmota?

Várias perguntas pairavam no ar: por que raios só agora, depois de milhões de anos de escala evolutiva e outras tantas centenas da existência dos carros (se considerarmos os carros-de-boi), uma marmota foi atropelada? Será que as marmotas são tão cuidadosas que nunca atravessam a rua sem olhar para os dois lados? Será que são tão retraídas a ponto de evitarem o contato com o público? Coisas que num primeiro momento ficavam sem resposta.

Após alguns dias de aturdimento generalizado, entretanto, instaurou-se uma CPI no Senado para apurar o caso. A pressão de certas camadas da sociedade foi tamanha que até o Presidente da República interveio: foi recomendado que se paralisassem quaisquer votações na Casa até que o caso do atropelamento da marmota fosse enfim resolvido. Todos os Senadores, de situação e oposição, se propuseram a ajudar.

Contra o motorista foi expedido um mandato de prisão preventiva; o animal falecido foi levado ao IML de um município próximo ao quilômetro 120 da Rodovia Marechal Polaco para a realização de exames. Fotos do local do acidente foram apresentadas como evidência e legistas examinavam-nas exaustivamente. No Fantástico, por fim, foi exibido um vídeo amador exclusivo que supostamente mostrava a hora exata do atropelamento. Isso caiu como uma bomba na sociedade.

A opinião pública ficou dividida: se por um lado alguns acusavam o motorista de desatenção e despreparo, outros diziam ser da marmota a culpa por tamanho descuido na hora de cruzar uma rodovia. Passeatas foram deflagradas, piquetes realizados, abaixo-assinados propostos. Todos queriam respostas, e respostas imediatas. Ou o motorista seria preso e a sociedade entenderia que crimes hediondos como esse não ficam impunes no Brasil ou a marmota seria reconhecida como mártir, passando a representar todos os bichos que sofrem com a crueldade e indiferença do Homem.

Um acontecimento, porém, fez o caso cair no completo esquecimento: começou a Copa do Mundo.

quinta-feira, 11 de março de 2010

A partida de Fred

De todos que ali viviam, Fred era o último que alguém desejava que partisse desta para melhor. Sujeito decente, educado, trabalhador, não tinha rabo preso com ninguém. Apesar de longe do estereótipo de atleta, não bebia, odiava cigarros e praticava diariamente longas caminhadas. Não destratava nenhum à sua volta e jamais teve algum inimigo. Era uma mistura de Longfellow Deeds com Pee-Wee Herman, sem contar um quê de Francisco de Assis para com os animais.

Conta-se que uma vez Fred foi chamado à corte às pressas pelo juiz local. Não que tivesse feito algo de errado: o magistrado era um velho amigo que o considerava perfeito para ponderar e mediar um eventual acordo entre as partes em litígio. Não há como se verificar a veracidade dessa informação, mas este é o tipo de anedotas que se contam sobre a importância do rapaz no município.

Sem dúvidas ele deixará saudades. Seu jeito simpático invariavelmente conquistava de velhinhas moradores de rua, de políticos a drogados participantes do programa por ele assistido. Suas visitas mensais ao orfanato da cidade eram mais do que ansiadas. Foi nomeado membro honorário do Rotary Club e da Academia Municipal de Letras sem jamais ter sequer botado os pés uma qualquer uma das duas associações. Fred certamente era mais do que bem quisto pela população.

Seus amigos mais próximos sentirão falta dos saraus que ele costumava organizar, muitos deles com motivações filantrópicas. Ficarão orfãs também de alguém que conseguia com tanta facilidade juntar pessoas para uma inocente partida de Imagem & Ação. Era Fred, por exemplo, quem sempre tinha uma carta na manga para domingos chuvosos, quermesses adiadas ou até mesmo primeiro dia de férias coletivas.

Na ocasião de sua partida, a comoção foi generalizada. Centenas de pessoas acompanharam-no, aos prantos, até o último momento possível. Todos se esvaiam em lágrimas, inclusive bad-boys e lenhadores. Era uma pessoa querida que os amigos perdiam, uma figura histórica que ficará para sempre na memória da cidade.

Em meio a inúmeras coroas de flores, uma enorme faixa patrocinada pela prefeitura resumia o sentimento de todos ali presente. Ela continha os seguintes dizeres:

"Fred Astaire de Oliveira, filho ilustre do município de Santana do Livramento do Sudoeste: sua passagem por nossa terra foi marcante. Nada que um dia aconteceu ou um dia virá a acontecer conseguirá apagar você das nossas memórias. Todo habitante de nosso humilde povoado foi, de uma forma ou de outra, tocado por você, por suas palavras de apoio, por seu incansável desejo de ajudar, por seu infinito sentimento humanitário.

"Fica aqui o desejo de todos para que seu legado permaneça. Que tudo aquilo que você um dia semeou e continuava por fazer até o último instante floresça e gere novos frutos. Que Deus esteja ao seu lado nesta nova etapa, e que seu exemplo seja para sempre seguido pelo bem da nossa população.

"Fred Astaire de Oliveira, obrigado por ser o primeiro Santanense a ingressar numa faculdade. Boa sorte em São Paulo.

"(Povo de Santana do Livramento do Sudoeste)."

terça-feira, 9 de março de 2010

Acidentes acontecem

À parte da tristeza e o sentimento de infortúnio causados, o acidente no futsal do último sábado (que acabou matando o jogador Robson Rocha Castro) serviu para indignar ainda mais os anti-moralistas. Vale frisar que a perda de um atleta AND um ser humano não tem nada que ser comemorado, e que se Deus existisse coisas como essas não aconteceriam. O que indigna os anti-moralistas é o fato de já terem iniciado o processo de caça às bruxas num caso desse.

Um acidente - e é bom que fique bem claro que acidente significa uma casualidade, uma fatalidade imprevista - tem culpados? Bom, sim, se considerarmos que a causa do acidente tenha sido negligência. Mas, por outro lado, mesmo que tenha havido negligência, a resposta pode ser não, pois um acidente poderia acontecer com qualquer um e a qualquer momento - e a negligência, portanto, não seria um fato assim tão determinante.

O ponto aqui é que a força-tarefa empregada na caça-às-bruxas-pós-acidente é diretamente proporcional ao status adquirido pelo desafortunado acidentado. Se em Barretos morre o cantor que estava assistindo ao rodeio na área VIP, o dono do touro é preso em menos de dois dias, e não sem antes processarem toda a linhagem do animal (o de chifres [o touro!]) e seus respectivos criadores. Se morre o Palhaço responsável por desamarrar o saco do bicho, coitado, mal rezam-lhe duas ave-marias.

E não que o saudoso Robson fosse famoso. Pelo contrário. Muitos que leram "o saudoso Robson" na frase anterior tiveram que pensar por alguns segundos ou mesmo recorrer ao primeiro parágrafo do texto para saber de quem se tratava. O jogador falecido não era nem um pouco famoso, ao menos fora das rodinhas especializadas. Mas foi um acidente inusitado. Não é todo dia que alguém morre por dar um carrinho numa quadra de futsal. E, como tudo o que é inusitado, o episódio ganhou as mídias numa velocidade que nem Euller, o Filho do Vento, conseguiria atingir.

Está na mídia, é celebridade; é celebridade, exige respostas rápidas. "Já estamos verificando as circunstâncias e em pouco tempo teremos o nome do responsável", disse a delegada responsável pelo caso. A pergunta: para que se necessita de uma delegada num caso assim? E "responsável pelo caso"? Certo, é claro que é primordial averiguar qualquer caso de negligência, mas já foi noticiado uma centena de vezes que o ginásio onde ocorreu a partida não só tinha permissão para sediar jogos como recebia uma avaliação semestral da Defesa Civil. Isso, por si só, não seria suficiente para isentar qualquer um que não da própria Defesa Civil de uma responsabilidade? E se o único "culpado" pode ter sido alguém da Defesa Civil, órgão do governo, que eles se entendam entre si e deixem de atormentar os responsáveis pelo ginásio e suas famílias com ameaças de prisão.

Acidentes acontecem. Tanto foi com Robson como poderia acontecer com qualquer um. E poderia não ser fatal, até. E poderia nunca acontecer. Essas coisas se dão por combinações de fatores jamais imagináveis - daí ser chamado de acidente. Robson Rocha Costa estava no lugar errado, na hora errada. Era um jogo festivo e ele poderia nem sequer ter sido chamado. Acontece, como poderia acontecer comigo ou com você ou com seu tio com sobrepeso, que tanto jogamos em quadras sem qualquer avaliação de Defesa alguma, que dirá a Civil.

Acidentes são apenas formas aleatórias de Deus fazer sua seleção natural.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Imoral é que é legal

O moralismo faz de tudo para ser odiado. Não é mais preciso ser liberal paz-e-amor-bicho para odiar algumas atitudes dos chamados moralistas. Pegue a tão comentada propaganda da cerveja Devassa, por exemplo. Se ainda não a viu, procure no You Tube: não tem absolutamente nada demais. A Dona Carminha, famosa alguns anos atrás, era muito - mas muito! - mais ousada e sexy do que a atual.

E, verdade seja dita, isso não é só porque a Paris Hilton é completamente insossa enquanto Dona Carminha era um avião. A propaganda não tem nada de extraordinário e ponto. Ela simplesmente não é capaz de fazer um garotão em seus férteis 14 anos deixar de lado Malhação ID correr para o banheiro. Se ele o fizer, aliás, será mais por causa da novelinha do que pelas imagens da Dona Hilton se refrescando com uma lata de cerveja.

O comercial foi proibido por conta das "poses sensuais, consideradas exageradas por consumidores". Fala sério? No país do Carnaval? Não sei de que consumidores eles estão falando. Quem tem Big Brother na TV aberta não se indigna com mais nada. Quer mais apelação do que Big Brother e a tal da Fazenda? Ver mulheres ensaboando umas às outras é moral enquanto uma loira aguada insinuando algo pateticamente sexy não? O Conar que me conte quem foram o consumidores que consideraram as "poses sensuais exageradas" que vou mandar-lhes o endereço do seminário mais próximo.

Outro assunto muito em voga ultimamente é o chapéu dado por Neymar no zagueiro Chicão, do Corinthians. Num lance já parado pelo juiz, a sensação do Santos puxou a bola por cima de um desesperado Chicão, que repreendeu o rapaz com palavras que seriam proibidas pelo Conar sem dó nem piedade. Aí vem aquela velha pergunta: e daí?

Qualquer um que joga pelada aqui sabe que futebol teria bem menos graça se não fosse o sarro que se tira dos adversários depois do jogo. O legal é se reunir em volta da mesa e ficar lembrando os lances da partida. "E aquela caneta que eu dei no Fulano? Humilhei". Querem tirar isso do futebol profissional. Querem dar amarelo se o cara inventa de dar um drible da vaca na lateral de campo, alegando que foi sem objetividade.

Objetividade, seu juiz? O objetivo é ter motivo para risadas depois, no bar. Porque não sei se o senhor sabe, mas jogador de futebol é tudo amigo. Acabou o jogo, bora pro bar tomar uma e comentar os lances de efeito. Se eles brigam durante alguma partida é porque isso é algo absolutamente normal. Pais ficam meses sem falar com os filhos depois de uma pelada na praia. Coisas do futebol. Ninguém quer perder, porém todos querem humilhar. Os humilhados nem sempre levam na esportiva.

Parem de falar que o cara faz firula e vejam futebol com os olhos de uma criança. Não há que julgar pela objetividade, e sim pela beleza do espetáculo. A moralização - do futebol, da televisão, do que quer que seja - só serve para banalizar. Se tudo for feito com a moralidade do Conar nada mais terá a menor graça.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Tio Joel e o amor

Quem já ouviu falar do Tio Joel sabe que sabedoria popular é seu sobrenome. São deles todos aqueles conselhos úteis e precisos sobre como tirar a mancha do carpete ou se livrar do chulé usando apenas casca de laranja e azeite de oliva (desde que, claro, o azeite seja extra-virgem). Dele nada escapa: a tosse contida de uma criança é suficiente para o doutor Tio Joel dizer que tipo de doença ela tem.

Quando diz respeito a relações inter-pessoais, porém, Tio Joel ataca em outra frente. Os conhecimentos continuam lá, porque um homem sábio é sempre um homem sábio, mas ele prefere fugir das dicas úteis e precisas da sabedoria popular para fazer o pupilo refletir usando a boa e velha filosofia popular.

Foi assim quando alguém resolveu perguntar-lhe o que era o amor.

"Filho, o amor é uma coisa complicada. Eu poderia te enrolar aqui dizendo aquelas bobeiras de que amor é quando um olhar encontra o outro e as mãos começam a suar e o coração bate mais rápido e os pés formigam e o estômago entra em parafuso e você, naquele momento, sabe que é ela. Não tem nada disso. Ou tem, mas não acontece tudo de uma vez e não tão de repente assim.

"Quando o amor acontece, você olha para ela e acha que é, mas não tem certeza alguma. Você dá aquela olhada meio de lado, uma giradinha na cabeça meio que pensando 'mas que...?' e vai fazer outra coisa. Quando você menos espera, pode ser no ônibus, arrumando o sifão da pia ou no meio daquele copo de whisky (Tio Joel adora referências pop), ela aparece na sua mente. Puf! E mais uma vez você pensa 'mas que...?', dá uma chacoalhada para ver se bota as idéias em ordem novamente e segue a vida.

"Depois de um tempo, meu filho, essas aparições ficam mais constantes. Você faz menos a pergunta 'mas que...?' e quer estar com ela. Você quer ligar, mas não sabe o que falaria; você liga e desliga antes de ela atender; você manda recados esperando aquela resposta para a qual a tréplica já está até escrita. Se ela responde, ela te ama e o futuro é radioso, tenham vocês 14, 22 ou 40 anos. Se ela não responde, você está sozinho nessa - e esse é o problema com o amor.

"O amor não te deixa. Nunca. Por isso acho que a palavra amor é tão banalizada: amor de verdade só existe um, e você nunca sabe onde e como irá encontrá-lo. Se você já achou o seu, ele vai lhe acompanhar pelo resto da vida, quer ela queria, quer não. Uns viram psicopatas por isso, mas a maioria segue a vida. Ficam tentando achar outro. Tentando e tentando, até que se contentam com menos e acabam se casando - como eu e sua tia.

"Eu tive um amor, mas ela não correspondeu. Por isso sei de tudo isso".