sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Outra de Mário e Júlia

Júlia esta dormindo sentada no sofá da sala, a televisão está ligada e ouve-se um barulho de chaves do outro lado da porta. É Mário que tenta entrar de mansinho em casa, ele saiu dizendo que ia entregar uma furadeira na casa de um amigo, que mora no prédio do lado. Mas isso foi há quatro horas atrás, Mário até ligou dizendo que ficaria lá por uma meia hora. Pelo jeito a conversa estava boa na casa do amigo.

Ele cuidadosamente abre a porta e antes de entrar tira o tênis. Na ponta dos pés vai entrando em casa. O único barulho na sala é o som baixinho da tv, Mário encosta a porta e verifica se Júlia ainda está dormindo. Ela parece estar cochilando pesado, mas ele acha prudente não fazer barulho e segue em direção ao corredor. Quando de repente, não mais que de repente, ouve-se um grito.

- Seu grandessíssimo filho de um quenga!
- Júlia, espera.. eu..
- Espera o quê, seu vagabundo?
- Júlia...
- Cale sua boca e me deixa falar.
- Mas...
- Não nada de mas. Estou farta de suas “saídas rápidas” e mais ainda de suas desculpas esfarrapadas.
- Calma Ju, eu só...
- Calma? Calma é tudo que eu menos preciso agora. Seu calhorda, bandido, safado, cachorro, vadio. Como você me deixa nervosa.
- Mas Ju...
- Mas, mas, mas o quê? O quê você quer? Vamos me diga.
- Eu quero...
- Você não tem que querer nada. Você não está em condições de querer nada. E olha só para você. Te conheço, você estava tomando cerveja, não é?
- Amor, eu só...
- Não vem me agradando não, seu cachorro.
- Não fala assim.
- Ta bom, só me responde uma coisa. Isso é hora de chegar em casa?
- Amor, eu não estou chegando, só vim buscar o violão.

Fim

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Invasão

“Eu vou até aí e te pego, seu desgraçado”, Júlio gritava de um lado da cerca. “Você não é páreo para um judoca faixa-cinza como eu. Acabo com você num segundo, com uma das mãos amarrada nas costas”. Do outro lado, protegido por quase dois metros de arame farpado e um casal de pastores alemães, Lauter não respondia. Coçava sua barriga flácida num quê de desprezo e ironia.

A discussão começou por causa de uma bola de futebol que caíra em seu quintal. Júlio jogava com a sua turma, os caras da rua de baixo, no campinho ao lado da praça. Lá, como se sabe, é área dos caras da rua de cima, e a interação entre as duas turmas há muito tempo era considerada impossível por ambas as partes. Os invasores chegaram de repente, antes da aula acabar (sabe-se lá como todos os caras da rua de baixo conseguiram sair da escola antes do sinal tocar), e dominaram o campinho na base da ocupação estilo sem-terra.

Jogaram por mais de uma hora antes do incidente. Os caras da rua de cima, os donos do campinho, apenas observaram, de longe, a movimentação. Não podiam reivindicar a posse, não naquele momento. Estavam em menor número porque a turma da quinta série da escola da vila estava numa excursão em Ponta Grossa, e mais da metade dos caras da rua de cima eram da quinta série. Além disso, todos ali eram mais novos. Só não haviam perdido definitivamente o “mando” de campo até então porque o pai de um deles, o Seu Pedro, era uma espécie de síndico do bairro. Todos na região o respeitavam. “Se o Seu Pedro falou, tá falado”, diziam. E ele falou, certa vez, que o campinho ao lado da praça era dos caras da rua cima – os outros disseram simplesmente amém. Só em casos esporádicos, quando aconteciam campeonatos ou invasões como esta, que os caras da rua de baixo jogavam no campinho ao lado da praça.

“Vocês não deveriam estar aqui”, Lauter sibilou calmamente para o nervoso Júlio. O outro respondeu:

“É, mas agora nós já estamos, e quero ver alguém nos tirar daqui”.

“Eu posso falar com o Tio Pedro e ele tira vocês em dois segundos”, respondeu Lauter, agora sentado sobre um tronco, alisando a bola do adversário que jazia em seu quintal.

Júlio estremeceu. Sabia que Seu Pedro podia tirar ele e seus amigos dali a qualquer momento. Se não o fizesse pela força, algo improvável em se considerando o Seu Pedro, o faria falando com seus respectivos pais. Júlio e seus amigos teriam o jogo interrompido, perderiam a bola que haviam acabado de comprar e ainda levariam uma bela bronca ao chegar em casa – a ordem para que eles jamais fossem jogar no campinho ao lado da praça era explícita. Pôs-se, então, na defensiva:

“Não precisa exagerar, Lauter. Devolve a bola que a gente vai embora”.

Lauter coçou a cabeça, pensativo. Olhou para baixo e para os lados, como que procurando uma resposta. Nisso os outros caras da rua de baixo foram chegando, preocupados com a demora do pereba Júlio, que fazia quase dez minutos que tinha ido buscar a bola que chutara por cima do alambrado. Chegou um, chegou outro, e foram logo se postando ao lado e atrás de Júlio, numa formação quase que hierárquica.

“Devolve nossa bola, Lauter”, repetiu Júlio, meio resignado, com seu olhar de peixe morto. “Se você nos der ela agora a gente promete que vamos embora. Vamos jogar no nosso campinho, mesmo ele ficando a cinco quadras daqui”.

O pequeno Lauter (era minúsculo comparado aos caras da rua de cima), que brincava de pegar com um dos cachorros enquanto ouvia o apelo, estacou. Sentiu um misto de compaixão e pena dos adversários da outra rua. “Cinco quadras é realmente muito longe”, pensou. Fez mentalmente a conta de quanto tinha que andar quando precisava comprar agulhas para a avó, lá na avenida. Quatro quadras e pouco, e já achava uma eternidade.

“Vocês têm mesmo que andar seis quadras até chegar no seu campinho?”, perguntou, sem olhar para os outros.

Eles se entreolharam. Nunca tinham realmente contado, mas era praticamente consenso que andavam pelo menos cinco quadras até o seu campinho. O do lado da praça ficava a apenas uma rua da casa deles, e mesmo a ladeira que precisavam subir era menos desencorajadora que as cinco supostas quadras até o outro. Um deles, o mais tímido, que estava escondido atrás da galera, falou por detrás das lentes fundo de garrafa, numa voz quase inaudível:

“Uma vez eu contei... Dá oito quadras daqui até lá, mas aquela onde fica o armazém tem o dobro do tamanho das outras”.

Lauter fechou os olhos e suspirou. Oito quadras. Era o que precisava andar para chegar até a casa da Tia Paula, irmã da sua mãe. Adorava ir até lá, mas quando o pai não estava em casa e tinham de ir à pé pensava em desistir. Só os bolinhos de chuva que a tia fazia conseguiam convencê-lo de sair de casa e camelar um sem-fim de ruas até aquilo que seu irmão Beto chamava de “casa dos doces”. Já os caras da rua de baixo tinham que andar essa distância todos os dias só para jogar bola. Nem uma bomba de chocolate sequer os esperava no destino. Refletiu por um tempo olhando fixamente para cada olhar sombrio que os inimigos lhe lançavam para então dizer:

“Querem saber do quê mais? Se o Seu Pedro falou, tá falado. Vão jogar no campo de vocês, fique ele onde ficar”. E então chutou a bola dos caras da rua de baixo o mais forte que pôde para o alto. Todos acompanhavam com os olhos enquanto ela subia. Um deixou escapar um grito, meio de raiva, meio de desespero. Parece ter calculado o trajeto da bola com ela ainda no ar: quando a viagem terminou, ela caprichosamente caiu sobre uma cerca viva abarrotada de espinhos.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Perfil

Oi, meu nome é Enciso. Enciso de Almeida Prado. Dizem que é um nome meio indígena, daqueles paraguaios ou bolivianos, mas não. Foi meu pai quem escolheu, e definitivamente não foi por este motivo. É que o velho sempre foi daquele tipo faz-tudo, que ataca em todas as frentes, de construção civil à gerência de lanchonete, sem distinção. Ele topa qualquer parada. E olha que quando eu digo "qualquer parada" é qualquer parada mesmo! Além das profissões já citadas, ele foi jogador de futebol, assistente de palco, motorista de caminhão, barman, vendedor de cosméticos, pastor evangélico, torneiro mecânico, guia de turismo e dentista. Isso se eu não esqueci de alguma coisa.

Para nós, a família, essas mudanças sempre foram uma grande diversão. A cada profissão que papai tinha, ele assumia uma personalidade diferente. Já foi extremamente coletivista a ponto de dividir a renda da família em partes iguais e dar uma porção para cada um, na época da tornearia; malandro-agulha, daqueles que sai no sábado para comprar cigarro e só volta segunda-feira, quando foi jogador profissional; um metrossexual à la David Beckham na época que trabalhava na Avon; e barrigudo beberrão, quando dirigia sua carreta Brasil afora. Só foi ruim quando ele resolveu ser pastor: além de não levar nada de interessante para casa (os pais sempre levam sobras divertidas do trabalho para os filhos), ele falava mais alto que camelô de praia.

Fato é que papai tinha a estranha mania de dar nomes temáticos à prole. Dá para saber em que profissão ele estava quando do nascimento de cada filho só pelos nomes. Por exemplo: Pelé nasceu quando papai era o ponta-esquerda do União São João de Araras; Martini, a mais velha, é de quando o velho era barman na orla de Fortaleza; Senegal é da época de guia turístico, porque foi ele quem criou a rota Brasil-África para a PorecaTur; Dejair nasceu quando papá era caminhoneiro; e assim por diante.

Quanto mamãe teve a mim e a meus irmãos (somos quadrigêmeos), o velho estava dando uma de dentista. Foi esse o nosso azar. Quer dizer, azar de meus irmãos, pois eu sou chamado pelo comum e banal nome de Enciso. Sim, além de mim temos o Preciso, o Conciso e o Canino. A este, coitado, papai sempre se desculpa dizendo "perdão, meu filho, por ter me esquecido do histórico Narciso naquele dia".

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Festa no Paulo

Suzana entrou na sala escura e foi logo se abancando. Puxou para si um bloquinho e pôs-se a anotar. Era seu maior defeito, o de escrever compulsivamente. Não podia ficar um instante sequer sentada sem que estivesse rabiscando alguma coisa. Coisas sem sentido, palavras apenas, às vezes desenhos; só pelo prazer de rabiscar. Tinha uma coleção de canetas vazias em casa (especula-se que seja esse o seu vício, e não o de escrever por escrever).

Num palco improvisado mais à frente um palestrante falava. "Devemos cuidar da nossa mata ciliar! Sem ela nossos rios irão secar, faltará alimentos e...", bradava ele ao microfone. Era um homem alto, pesado, e suava muito enquanto percorria de um lado a outro da sala. Tudo o que falava, Suzana ia anotando. Não perdia uma palavra. Tal era seu costume que conseguia conversar enquanto transcrevia as falas do orador:

- Você vai hoje na festa do Paulo? – Perguntou à amiga que estava sentada na fileira da frente.
- O quê? – A outra respondeu, aturdida, parando de anotar o que ouvia.
- Eu perguntei se você vai na festa do Paulo, hoje à noite.
- Eu sei que você perguntou isso, Suzana. Só que saber se isso lá é coisa que se deva perguntar...

Suzana ficou sem entender. Até parou de escrever. "O que será que eu falei de errado", pensava. Tentou se lembrar se a amiga por acaso tinha tido um caso com Paulo e não queria mais vê-lo, mas nada lhe ocorreu. Suzana imaginou que a amiga devia estar ofendida e se arrependeu de ter perguntado, só não sabia ainda por que motivo. Meio constrangida, perguntou:

- O que é que tem eu perguntar se você vai na festa do Paulo?

A outra se virou irada e, antes de levantar e sair correndo sem pedir licenças, praticamente gritou:

- Você é uma besta. Uma besta!

A sala inteira se virou para ver o que tinha acontecido. Suzana apenas observou a amiga sair e se encolheu na cadeira. Todos a observavam, e ela não sabia o que fazer. Apertou contra si o bloquinho, envergonhada. Juntou suas coisas e levantou lentamente, como se aquilo a fizesse desaparecer. Tirou o cabelo de trás das orelhas de modo que lhe cobrissem o rosto e saiu. Do palco, o palestrante, que tinha se calado como todos na sala, seguiu com o seu falatório.

Já no claro do corredor, Suzana correu os olhos em volta procurando a amiga. Dizia, num sibilo quase inaudível, "Rô! Roberta! Rô, cadê você, Rô?", mas ninguém respondeu. Seguiu resignada até o toalete – tinha um princípio de lágrima saindo dos olhos e imaginou ter borrado a maquiagem. Pensava, de si para si, enquanto empurrava a porta do banheiro: "mas o que foi que eu fiz de errado? Eu nem sabia que ela e o Paulo se conheciam". Então entrou.

Quando ouviu a porta bater atrás de si e o sensor da luz finalmente captar sua movimentação, Suzana percebeu um vulto correndo em sua direção. Pensava ser Roberta, a amiga ofendida, deixando transparecer um acesso de fúria. Ia arrancar-lhe os cabelos. Cairiam no chão, emaranhadas, uma arranhando a outra onde desse. Gritou o mais alto que pôde:

- Socorro! Alguém me ajude, tem uma louca no banheiro.

Então ela caiu no chão. A outra tapou-lhe a boca e olhou fixo em seus olhos. Suzana viu o ódio impregnado naquele rosto febril. Imaginou-se morta, com a cabeça rachada de pancadas que a outra lhe daria – ou que pelo menos sairia dali com uma unha quebrada e uma saia rasgada. Roberta finalmente falou:

- Que bom que você chegou lá, amiga! Já não agüentava mais aquele palestrante chato. Queria sair daquela sala a todo custa. Não podia sair de fininho, porque ele tira sarro de quem faz isso. Uma outra moça saiu e ele a chamou lá na frente, no palco.

As duas então se abraçaram, chorando. Uma de nervoso, a outra de felicidade. Acharam graça daquilo tudo e de noite foram à casa do Paulo, juntas.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

E isso ainda foi pouco (bônus track)

E mais uma vez fui dormir no sofá. Júlia ainda gritava como uma maluca no quarto, talvez ela não tenha idéia que os vizinhas costumem dormir às três da manhã. Era questão de tempo, até o Seu Almeida, o porteiro, subir e nos chamar atenção pelo barulho. Por sorte ele apenas pediu silêncio pelo interfone. Júlia, com seu vasto arsenal de palavrões e uma vontade incrível de querer me irritar foram implacáveis comigo. Mas hoje ela quis ir além, ela queria que eu concordasse com mais uma de suas idéias absurdas.

Usei a boa e velha tática de deixar ela brigando sozinha, só que a ingrata além de não deixar eu argumentar, ainda queria que eu ficasse olhando para ela. Eu estava cansado da semana toda no trabalho e agora com as aporrinhações de Júlia. Não sei o que passa na cabeça oca dela. Adotar uma criança é muito nobre, mas não estou disposto a travar uma batalha, digna de Hércules, para adotar uma criança. E ainda não acho que a criança vá se desenvolver, de maneira saudável com uma maluca dessas na mesma casa.

Ela já não berrava mais, não que tivesse parado de brigar comigo. Pelo contrário, só estava falando mais baixo. O discurso dela era meu velho conhecido, bateu um soninho maroto e eu, displicentemente virei o rosto, dando as costas para ela. Júlia explodiu em fúria, veio com tudo para cima de mim. Quando ela menos esperava, deu um chute na quina do sofá e esmagou o dedinho do pé. Nessa hora senti pena dela, qualquer um se rende quando bate o dedinho na quina do sofá. Por incrível que pareça, ela esqueceu da briga imediatamente. Claro que me aproveitei, para tentar recuperar meu lado da cama.

A peguei no colo, deitei na cama, passei gelol, no dedo dela e tentei acalma-la. Ela nem parecia mais aquela doida que queria me desossar vivo. Cuidei dela até que pegasse no sono, o que não demorou muito. Assim que percebi que ela dormia fui me aconchegando na cama. Puxei o edredon e finalmente iria dormir. Quando eu estava quase pegando no sono, sinto uma joelhada com força nas costas e ouço a voz raivosa da Júlia: - não é porque cuidou de mim que esqueci que você virou as costas para mim!

Puto da cara. Peguei me travesseiro e fui para o sofá. Como se não bastasse, fico sem sono, com dor nas costas e a lembrança da minha mãe me dizendo: - Essa Júlia não é mulher pra você não meu filho.

Lá do quarto ouço a voz ela falar mais alguma coisa que não entendo direito.
- Está doendo as costas?
- Está sim – repondo.
- E isso ainda foi pouco.

Fim

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Brigas

Quem olhava de fora via um trabalhador concentrado no serviço, mas a verdade é que ele passara a manhã inteira olhando para a tela de seu computador pensando nela. Via naquela profusão de cores e formas (sua proteção de tela chamava-se "psicodelia") o próprio vulto da mulher amada. Os cabelos esvoaçantes , os olhos cor de mel; dir-se-ia até que escutava sua voz delicada falando-lhe asneiras no ouvido. Ela, só ela.

Tinham brigado na noite anterior. Não uma briga qualquer, mas uma daquelas que culminam no fim de um relacionamento. Daquelas em que verdades que são ditas sem pensar, que machucam profundamente e causam uma ira incontrolável. Durante uma briga dessas, o amor, por mais antigo e sólido que pareça ser, simplesmente desaparece. Só o que fica é ódio e rancor. No dia seguinte tudo volta, claro, e para ambos, principalmente se é um amor verdadeiro – não se deixa de amar uma pessoa de um minuto para o outro. Esquece-se, sim, do amor por alguns instantes durante a briga, mas jamais para toda a vida. Aliás, quando se ama de verdade, ama-se para todo o sempre, mesmo que estejam cada qual do seu lado do globo e com seus respectivos (e novos) cônjuges. O amor é o mais puro e irracional dos sentimentos.

Ele foi expulso da casa dela sob os gritos de "vá; vá e não volte nunca mais, seu grande canalha", e nem teve tempo de se defender. Ou melhor: teve, mas não o fez. Arrependia-se, agora, de não ter respondido a ela no mesmo tom. Fora humilhado, escorraçado, botado para escanteio – e nada conseguiu fazer para evitar. Nem um grito, nem uma batida de porta. Deveria ter-lhe dito ao menos que a ama e que nada para ele é mais importante do que ela. "Mas um homem é extremamente vulnerável", completava em pensamento. "O instinto é mais forte do que qualquer caráter. O ser humano é, acima de tudo, um animal. Sua racionalidade está justamente em conseguir controlar alguns instintos". Alguns.

"Vou ligar para ela", disse de si para si. Mas ligar a essa hora, conjeturou, era rebaixar-se á mais ultrajante humildade a que um homem pode chegar. Ela tinha razão de fazer o que fez, apesar de tudo. Ele errou e, por mais que não fosse totalmente culpado, deveria manter-se firme para não dar a razão de mão beijada a uma fêmea. A um homem que deseja ter uma mulher jamais é concedido o direto da humildade. Ele precisa ser convicto, durão, senão elas tomam conta. Não que isso seja totalmente ruim, mas uma mulher que tem o controle da situação logo perde o interesse. Balzac disse que a duração da paixão de um homem é proporcional à resistência oferecida pela mulher, então o contrário também deveria valer.

Voltou para casa confuso. Queria lhe telefonar, mas a conhecia muito bem para saber que certamente ainda estaria de cabeça quente. Seria novamente humilhado, ao gritos, e mais uma vez sequer conseguiria se fazer ouvir. Pensou, acendendo um charuto, que é preciso saber a hora certa de interpelar uma mulher ofendida. "Há um momento exato entre a ira quase nuclear e a resignação, que bem pode durar milésimos de segundo como décadas – só depende apenas do amor que um sente pelo outro", concluiu. Sentou-se, anda fumando, e decidiu esperar. Esperaria o tempo que fosse preciso. Tinha tempo.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Suicidio

Outro dia tomei a decisão mais radical da minha vida: me matar.

Tudo começou num domingo qualquer. Acordei e não conseguia nem abrir os olhos; a cabeça doía tanto que parecia ter uma bateria do Olodum alojada dentro do meu cérebro. As batucadas eram desordenadas e intensas feito ensaio no Pelourinho, e atingiam principalmente os lados e a frente do crânio. Seguiam no ritmo do coração, que por sua vez já começava a dar sinais de que não suportaria um dia inteiro trabalhando naquela pressão. Eu sentia os dedos das mão tremerem com a força da pulsação. O sangue parecia estar grosso e pesado como calda de chocolate. A essa hora, 20 segundos depois de acordar, eu já tinha entrado em pânico.

Tentei articular algumas palavras para reclamar da vida; não deu. A língua estava grudada no céu da boca, os dentes amarrados como se eu mordesse uma bala de caramelo. Senti como se tivesse passado a noite comendo um novelo de lã. Quando a língua finalmente se desprendeu, senti literalmente o gosto amargo da derrota. Parece que aquela mistura ar com boca e com ressaca provoca reações químicas únicas que criam o pior aroma possível de ser produzido por um ser humano. Senti nojo, asco de mim próprio.

Levantei, com muito custo, e fui até o banheiro. Ainda tinha os olhos fechados quando abri a torneira, lavei as mãos e joguei água no rosto. Foi como se Deus, o Pai todo-poderoso, tivesse me dado um tapa e dito "toma!", tal qual um Capo da máfia italiana faz no filho quando este vai preso. Senti meu mundo girar, e definitivamente não era o efeito da bebida. Sentei-me na privada de frente para o espelho e, encarando meus próprios olhos, pus-me a pensar. Eu olhava em volta absorto, perdido, aturdido. Nunca tinha me ocorrido uma crise existencial como aquela. Minhas perguntas iam além da clássica "qual o sentido da vida". Eu queria saber mais. Queria saber o porquê das coisas. Queria saber como tudo tinha chegado àquele ponto.

Foi tudo culpa do gin, concluí. Sabe-se que a bebida que o cara toma molda-lhe o caráter, e o gin é a pior delas. O da cerveja é sempre o falastrão; o que toma whisky, o das tiradas inteligentes; vinho, romântico; conhaque, introspectivo. Mas com o gin não se tem uma definição precisa. Quem bebe gin se sente seguro sempre, em qualquer situação, porém não sai por aí se gabando. O bebedor de gin é aquele cara que está sempre quieto, mas quando é exigido tem a resposta na ponta da língua. Não faz piadas e não ri das piadas, só que nem por isso é esquecido pela turma. O bebedor de gin é importante nos momentos de filosofia. Ele é o sábio, o "professor". E eu era o bebedor de gin da minha turma.

Certamente naquela manhã eu ainda estava sob os efeitos do gin. Tive um momento de reflexão que talvez jamais tivesse numa situação normal. Pensei "puxa, sou um cara de quase 50 anos, solteirão, com um bom emprego, uma boa casa, o carro do ano... Mas e daí?" Eu queria descobrir para quê tudo aquilo estava na minha vida. Quando eu morresse, oras, tudo iria para o lixo. Todos os meus anos de faculdade, pós-graduação, mestrado e tudo mais iam parar a sete palmos abaixo do chão, como se nunca tivessem existido. Todos os meus romances, minhas viagens, meus gols pelo campeonato do clube: pó, tudo pó. Abri a gaveta e peguei minha pistola.

Ah, a boa e velha Taurus. Nunca me decepcionou. Sempre esteve a postos quando precisei dela. Cabo cromado, semi-automática; a melhor da categoria. Bastava uma bala entre os olhos para resolver ali mesmo, no banheiro, aquela dúvida que me atormentava. Tudo ia acabar como começou: no escuro. Apagar-se-iam luzes, sol, estrelas, pessoas, carros, prédio, contas, TV, minhas garrafas de gin. Tudo. Eu ia para sempre viver no breu, sem precisar pensar em mais nada. Serviria apenas de comida para os vermes subterrâneos, e esta era minha eternidade. Um tiro e puf! Acabou, it's over, fine! Recuperaria, finalmente, a minha inexistência de volta.

Pus a arma na frente dos olhos; queria ter como última visão a bala saindo do cano, por mais que nunca mais fosse me lembrar daquilo. Não preparei nada, não avisei ninguém, não troquei de roupa, nada. Nem carta de despedida fiz. Aliás, sequer saí do banheiro naquela manhã. Apenas me certifiquei de que a bala atingiria bem no meio do hipotálamo e me causaria uma indolor e instantânea morte cerebral. Respirei fundo e percebi que estava menos nervoso do que imaginei que ficaria. Talvez a consciência de que estaria livrando o mundo de um fardo me acalmou. Então puxei o gatilho. Não, não vi a bala sair. Não deu tempo. Num instante ela estava na arma, no outro, devidamente alojada bem no centro do meu crânio. O rosto devia estar esfacelado e o sangue jorrando pelo banheiro inteiro, mas não tive tempo de conferir. Ao contrário do que imaginei, tudo ficou branco como sala de hospital. E eu definitivamente não estava no hospital.

Morri, sim, mas, apesar da minha torcido, não acabou. Esta é a maior frustração de um suicida: morrer e continuar naquela existência castigante. Quando tive coragem de reabrir os olhos vi dezenas, centenas de outras pessoas ao meu redor e pensei "meu deus, onde será que eu estou?". Ele mesmo me respondeu: "no céu, meu filho. No céu". Uau! No céu, e logo eu... Ó tamanha desgraça. Queria ser desligado, apagar, off; e não estar no céu, ouvindo harpas e observando anjos sem sexo. Só que foi isso o que aconteceu. Agora estou aqui, numa imensidão branca, cercado de pessoas exatamente iguais àquelas que eu já tinha conhecido. E, como se não bastasse, divulgando esta minha história através de um escritorzinho barato.

Bem, foi o único cérebro que consegui penetrar – o do João Ubaldo já estava devidamente ocupado.