terça-feira, 9 de novembro de 2010

A história de Nelson e Lorena

Torcer por um clube de uma cidade, ou Estado, diferente da cidade da sua, é complicado. Ao ponto de alguns conterrâneos rechaçarem aqueles que torcem por times “de fora”. O que dizer do torcedor da Seleção Brasileira que sofre com a Canarinho jogando sempre longe de terras tupiniquins. Se bem que da mesma forma que os craques, ela foi tomada de “assalto” pelo$ euros. Mas isso é prosa para outro post.

Vamos manter o pensamento aqui nesta Brasila mesmo, e olhar a situação de Nelson. Nelson é um cara tão comum, tão ordinário, que não desperta muito interesse assim a uma primeira vista. Ele vivia com os pais, tinha alguns planos, como passar o carnaval em Salvador, comprar um Playstation 3, trocar de carro, essas coisas. Sua grande paixão era a Portuguesa de Desportos. Sim era um fã da Lusa.

Não era descendente de portugueses, o pai italiano e a mãe uma nordestina filha de pai holandês e mãe brasileira. Em se tratando de brasileiro até pode ser que alguma coisa de português pudesse aparecer em um exame mais detalhado. Mas o fato é que Nelson era um torcedor da Lusa, com direito a tatuagem e carteirinha de sócio do clube. Mesmo longe.

Então numa bela tarde de sábado em Curitiba Nelson estava em um bar, desses com luz baixa e cardápio peculiar e público fiel. Neste dia estava quase vazio. Sentou junto ao balcão, pediu uma cerveja, um rolmops e perguntou para o sujeito que limpava o balcão, com um pano úmido que carregava no ombro, qual era o jogo da rodada. “Hoje tem Cruzeiro e Portuguesa”, disse o garçom que nem tirou o palito da boca para responder.

Nelson devorou o rolmops em duas dentadas. Tomou a cerveja toda e pediu mais uma. Cândido, o cara do bar, percebeu o escudo da Lusa tatuado no braço esquerdo de Nelson. “Deve ser difícil torcer pra Portuguesa”, disse. Era que precisava para que os dois se enveredassem por uma longa prosa sobre futebol até o começo do jogo.

De repente, não mais que de repente, entra no bar uma moça se acomoda em uma mesa perto da janela e com boa visão para a TV. Muito bonita, ruiva, cabelo curto, calça jeans, camiseta branca com uma jaqueta vermelha escura. Nelson olhou, tentou disfarçar, mas não conseguia desviar o olhar da moça. Cândido percebeu e puxou conversa com a moça, mostrou o cardápio e voltou a conversar com Nelson sobre futebol e sua curta carreira no Combate Barreirinha.

O jogo começou e tanto Nelson, quanto a ruiva ficaram com olhar fixo na TV. Ele descrente na existência de outros fãs da Lusa, imaginou que a ruiva fosse uma torcedora da Raposa. Isso fez com que ele, pelo menos durante o jogo, prestasse mais atenção ao jogo da Lusa do que a ficar olhando para a bela senhorita da mesa perto da janela.

Cruzeiro no ataque. A bola passa tirando tinta da trave. Nelson coloca as duas mãos na cabeça. A ruiva solta um “uhhhh”. Agora ele tinha certeza que a moça era uma mineira e que estava ali “vuduzando” a sua Lusa. O clima no bar ficou pesado. Nelson evitava olhar para a moça. Ela agia como se o gajo não estivesse ali.

Cândido chega com o pedido da moça. Uma cerveja, uma porção de amendoim, um rolmops (pasmem!) e uma porção de fritas com bastante bacon. Nelson ficou de boca aberta com o apetite da moça. Mas logo lembrou que ela era uma inimiga, e que se fosse para ficar ali secando a Lusa, ela que procurasse outro bar.

Lusa no ataque. Nelson se levanta, Cândido se estica no balcão para ver melhor o lance. A ruiva aperta com força um guardanapo na mão direita. O camisa 7 da Portuguesa acerta a trave do goleiro mineiro. Novo ataque da Portuguesa, o beque cruzeirense faz falta na entrada da área. Novo momento de tensão no bar. Nelson cruza os dedos. Ela não fala nada, mas mexe os lábios como quem diz: agora vai agora vai. Atrás do balcão, Cândido coloca o pano no ombro esquerdo. Parece estar torcendo para a Lusa.

O zagueiro da Lusa toma pouca distância, mesmo assim solta uma patada. A bola passa no meio da barreira. O goleiro da uma triscadinha na bola. A pelota, caprichosa, acerta o travessão, quica em cima da a linha, volta no travessão e morre no fundo da meta cruzeirense. Nelson grita, Cândido vibra rodando o pano sobre a cabeça e a ruiva bate palmas e diz “é isso ai Valdir” “solta a pancada mesmo” “luusaaa luuusaaaa”.

Nelson se toca que a ruiva também torce pela Portuguesa. E não era só isso. Além de linda, ela tomava cerveja, comia rolmops e pelo visto ainda adorava bacon. Ele investiu no flerte, ela correspondeu. Dias depois ela já não era só a ruiva do bar do Cândido, agora ela era Lorena. Casaram e hoje vivem juntos em Florianópolis, onde ganham a vida com a padaria que abriram.

Cândido conta até hoje para seus clientes a história de amor que viu nascer dentro do seu bar. Ele também faz questão de lembrar que o jogo terminou 4 x 1 de virada para os mineiros, mas isso não importa. Afinal, diante do amor o que mais importa!?

Fim

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Divago

Ando muitíssimo autocrítico ultimamente. Autocrítico e impaciente. Apago sem dó nem piedade, sem reler ou pensar duas vezes. Este texto, por exemplo, já foi um conto de quase três mil caracteres. Entediei-me e o apaguei sem sequer tentar um final repentino e macabro, características outrora tão marcantes na minha obra.

(Na minha obra? Que m...!)

Não sei bem o que ocorre. Ansioso sempre fui. Cético, crítico e impulsivo também. Será que já não escrevo mais como antigamente? Será que a obrigatoriedade de escrever – ossos do ofício – tirou-me aquela boa e velha gana de ousar? Tenho medo de parecer exagerado ou simplista demais. Sofro só por imaginar uma crítica a um conto breve ou comprido demais. Talvez essa exposição ao público real (aleatório e de diferentes culturas) que passei a ter ao me tornar efetivamente jornalista tem me dado arroubos de autoconsciência.

Deus, perdoai-vos. Eles não sabem o que fazem quando me criticam.

Tenho dificuldades com as críticas, admito. Não consigo vê-las como uma forma de crescimento. Absorvo-as e isso machuca minha própria honra. Mas pior que as críticas vindas de terceiros são as autocríticas – e já disse que nunca fui tão autocrítico na minha vida. Essas ideias que cada um tem de si mesmo são sempre as mais verdadeiras, são a certeza de que a pessoa necessita mudar alguma coisa e só não sabe por onde começar. Porque, afinal, se soubesse não se puniria e mudaria de uma vez.

Mas divago. Disse um sábio certa vez, acho que Sêneca, que nos grandes arroubes de eloquência há mais ruído que sentido. Não vou ficar me julgando nem me penitenciando em público. Já sofro demais dentro da minha própria cabeça. Estou num período de transição que por mais que já tenha durado um tempo relativamento grande trará bons frutos.

Ou não.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Ensaio Sobre o Pânico

Agora que o blog infelizmente virou uma bagunça institucionalizada, o pessoal passou a fazer reclamações formais. Um ser, porém, foi mais enfático e menos ranzinza: André Godinho, que, para provar que mostra a cobra AND o pau, escreveu um breve ensaio. Deleitem-se.


Nessa oportunidade de aparecer neste blog, dada pelo dileto Maycon o Dimas, proponho-me a escrever pensamentos não concisos que me atormentaram nessa manhã.

A pós-modernidade não é nada senão um projeto inacabado. Eu mesmo, aqui, desafiando a importância da meritocracia, coisa que nos degrada e que só a internet nos permite fazer, quero tratar de dizeres sobre o pânico.

Com mais delongas, penso no aspartame VS Omega3; o primeiro adoça e o último é amargo, mas fazem papéis inversos, na medida em que o doce esconde o câncer e outro cura até inflamação. Nem no café da manhã dá pra livrar-se dele, aquilo que tem mil e nenhuma face: o medo.  Em anexo vai o meu currículo. Brincadeira, não sei nem o que fazer no café da manhã!

As coisas são o que são em si e também o são em potencial, esse é o conceito ontológico que Aristóteles propõe. Tenho me valido desse conceito para sobrevivência, diferenciar do que é bom e pode ser ruim. A vida pós-moderna é a mais primitiva de todas, salve-se quem puder, antes eu do que nós.

Semana passada no café da manhã assistindo TV fiquei apavorado, vendo o inútil esforço de nosso presidente para tentar livrar uma mulher de ser apedrejada no Irã. O aspartame de imediato amargou e me tomou de câncer; Ok, a cultura é inimiga da lógica, mas o que temos visto no Irã não é em absoluto cultura. São más interpretações do dizeres do profeta, que não são os dizeres de deus e que estão no Corão.

Pra entender melhor essa locura temos que ver uma faceta do medo, a sua instrumentalização na política: “rapai se uma muié chifra um caboclo e é apedrejada, eu num me meto com esse presidente!”. É por ai.

Queria ser um bom escritor, só por agora, porque nem mesmo escrevo, pra tentar passar um pouco de pânico ao leitor. Mas acho que não é preciso; o caos dá conta de fazer.

O negócio mesmo é seguir com a correnteza, nada de ler Kafka e deprimir-se. Vou pro Barigui xavecar e escutar um funk. E, quem sabe, arranjar uma boa briga.


“Ontem sonhei que estava num dojo e o sensei pediu pra que eu dormisse. Sonhei dentro do meu sonho. Lá estive seguro. Foi então que a corrente reflexiva desfez-se e quando acordei  adocei o café, apavorado, nessa arena ocidental”.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A Visita

Creditavam a ela o título de mais devotada carola daquela instância. Ia à igreja todos os dias, sem exceção, às vezes em dupla jornada. Fizesse chuva ou sol ela ajudava na missa, na quermesse e no que mais fosse preciso, sempre com um largo e sincero sorriso no rosto. Diziam ser feita para aquilo, e que só não era freira pura e simplesmente por falta de nominação.

Não havia qualquer tipo de suspeita sobre a índole da moça. Houve quem dissesse, no começo, que ali tinha algum tipo de interesse, fosse no padre ou no dinheiro da igreja. O fato é que o pároco responsável já mudou mais de uma vez e a saúde financeira do pai dela não deixava resistir qualquer tipo de suposições. Era uma devota e ponto, daquelas bem à moda antiga.

Certo dia, numa terça-feira como qualquer outra, ao sair de casa para a igreja ela encontrou um homem de camisa branca e gravata parado junto ao seu portão. Mesmo de lado era possível perceber que ele era alto, de rosto bonito e nada ameaçador. Mesmo assim a moça freou por um instante, apreensiva. Aprendera a temer aproximações repentinas, sobretudo de homens, estivessem como estivessem vestidos. Não que tivesse medo – os ensinamentos da bíblia dizem para amar ao próximo como a si mesmo –, mas a vida mostrara-lhe que cautela no convívio social nunca é demais.

Ela aproveitou que lá fora o homem ainda olhava em volta para dar um passo atrás. Escondera-se atrás de um arbusto, já fora do campo de visão de quem estivesse na rua, para pensar no que fazer. Nessa hora ele virou e ela pôde ver seus olhos, azuis como o céu e bondosos como o de um filhote de labrador. O homem pôs algo embaixo dos braços e suavemente bateu palmas.

A moça sentiu-se mais tranquila com a aquela atitude. Fosse pelo que ele botara debaixo do braço – “possivelmente uma pasta, já que ele nada mais é do que um homem de negócios”, pensou – ou pela sinceridade daquele olhar resolveu atendê-lo sem chamar ninguém para acompanhá-la, algo que fazia com frequência. Levantou, livrou-se duma imaginária poeira e caminhou lentamente na direção do portão. Chegando lá percebeu que se enganara. No distintivo que ele carregava no peito dizia “Brother Sílvio”. Ele, ao vê-la, começou:

- Bom dia, irmã. Eu sou o Irmão Sílvio e aquela é a Irmã Jurema. Nós somos Testemunhas de Jeová. Será que podemos ter um minuto da sua atenção?

terça-feira, 15 de junho de 2010

Neologismos: frufruzar

Fui comprar bolacha hoje cedo. Depois de inúmeras e infrutíferas investidas nas farmácias, supermercados e até bancas de jornal da vida só consegui chegar a uma conclusão: o que raios aconteceu com os produtos comuns? Tudo o que eu queria era um simples pacote daqueles biscoitos de aveia, com uma castanhazinha ou duas talvez, e tudo o que encontrei foram dezenas de diferentes sabores, um mais estrambólico que o outro. Para se ter uma ideia, o sabor mais próximo do comum era frutas cítricas.

Frutas cítricas numa bolacha de aveia? O que raios aconteceu com os produtos simples e honestos?

O pior é que percebo que este padrão se repete em outros segmentos. Vejamos, por exemplo, o papel higiênico. Antes eram duas opções: o comum e o frufruzado de folha dupla. Hoje, não. Papel higiênico hoje tem perfumado, com hidratante, sem picote e até sabor lavanda! Quem é que gosta de lavanda, afinal de contas?

E qual é o problema com as coisas comuns? Outro dia fui comprar uma jaqueta e não achei uma (UMA) que não tivesse bolso no sovaco, zíper na horizontal ou uma bendita pochete acoplada. Não existem mais blusas planas, sem estampa, sem frufru. Tudo bem que neste caso estamos falando de moda, moda é feita para gostos diversos e gosto definitivamente não se discute. Só que a frufruzência está generalizada. Papel A4, por exemplo, que é aquele papel simples, para imprimir, uma coisa que é tão melhor quanto mais branca e plana for, tem atualmente dezenas de diferentes opções. E tudo não passa de... papel! Uma coisa branca que a gente pode escrever em cima. Pra quê frufruzar?

Posso parecer arcaico, mas tudo o que quero é um pacote de bolachas de aveia com castanha. E só.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Alienação paz-e-amor

Acho que nunca fiquei tanto tempo sem ler jornal. Nem na internet tenho acompanhado os highlights da vida cotidiana. Para quem já teve época em que lia três ou quatro jornais diferentes por dia – por obrigação meramente profissional, é verdade, mas mesmo assim... – não estar lendo nenhum é um grande retrocesso. E quer saber? Não sinto falta alguma.

Claro que numa mesa de bar, quando me perguntam o que achei da última do presidente ou sobre o aumento do seguro-desemprego na Tanzânia, não saber absolutamente nada sobre nada é vergonhoso. Mais: denigre a imagem que tinha, sobretudo com os amigos antigos, de ser sempre o mais atualizado. São escolhas da vida, e sobre escolhas e renúncias todo mundo já sabe bem (viva os chavões).

Jornal é uma coisa chata. Qualquer pessoa que já tenha lido um sabe disso. São as mesmas reportagens todos os dias, só mudam os nomes, números e uma ou outra curiosidade. Além disso, para achar notícia boa naquele calhamaço de folhas diário o leitor precisa ser um verdadeiro garimpeiro. Encontrar notícia alegre em jornal é como achar caixa-preta de avião francês em mar de desgraça brasileira.

Minha fonte de informação ultimamente tem sido os difamados e famosos blogs de humor, com sua total imparcialidade e falta de seriedade. Ou seja, só estou a par daquilo que pode ser gozado (no bom sentido, ou no mal, ou... sei lá!). Se tem piada, eu sei; se não tem, desconheço e desprezo.

A parte boa disso é que me preocupo menos com o futuro da nação. Não que isso seja uma boa forma de levar a vida, mas infelizmente é socialmente aceitável. Quando de nada se sabe, sobre nada é preciso opinar – e mais facilmente num mundinho cor-de-rosa. Acho que é por isso que tanta gente escolheu este way of life.

Não estou orgulhoso desse comportamento. Socialmente aceitável para mim é sinônimo de alienação, e alienação é desprezível. Entendo esta fase, porém, como uma temporada de férias, um afastamento momentâneo das mazelas do mundo. Coisa passageira, por certo. Não sendo, pior para mim, melhor para o mundo.

Enquanto isso aproveitem um Maycão paz-e-amor – porque quem não sabe o que está acontecendo não tem com o que se preocupar.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Vida longa ao Yorda

Ninguém sabia ao certo como nem quando Yordanov fora contratado. A família Silveira, há várias gerações abastada, tinha o costume de manter seus criados por décadas, até a morte ou a aposentadoria – nem o atual patriarca da família, porém, sabia dizer quando o africano com ascendência iugoslava entrara para o quadro funcional. Registros, não havia; fotos ou pinturas com familiares mais antigos, tampouco.

Isso passara desapercebido por anos e anos a fio, até que no último fim de semana, durante o chá das cinco, a pequena Clarissa fez a pergunta:  “Mamá, quando foi que o Titio Yorda entrou para a família?”

O desconforto foi geral. Apesar de jamais comentado, a longevidade do funcionário era um assunto que intrigava a todos. A fim de despistar a infante, Mamá disse que Yordanov fora contratado garoto, ainda no tempo do Papá Justino, mesmo sabendo que isso não tinha qualquer possibilidade de ser real: Papá Justino havia morrido há cerca de 15 anos, e em suas memórias existe várias citações sobre os aconselhamentos do “sábio Yorda”.

Foi convocado uma reunião geral para discutir o assunto. Todos os Silveira deveriam estar presente, do mais velho ao mais jovem, do mais próximo até aquele que havia anos exilara-se no Turcomenistão tocando o braço asiático dos negócios da família. Partindo do pressuposto que todos os familiares possuíam seus aviões particulares, o encontro fora marcado para dali a apenas dois dias.

O local escolhido foi o Palácio Tenório Silveira II, também conhecido como Palácio Real, só usado para velórios, recepções de famílias reais e reuniões acerca de crises econômicas mundiais (notadamente o crack da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929). O casarão era tão pouco usado que Marco Aurélio Silveira, recém-ingressado na faculdade de Economia da USP e exímio tocador de Bandolim, jamais havia adentrado o local.

No dia do evento até a Polícia Militar foi mobilizada. A quantidade de Silveiras presente era tanta que o tráfego na Avenida Paulista, único caminho por terra para o Palácio Real, teve que ser alterado. Todas as pistas foram liberadas e os sinaleiros cuidadosamente programados para que se mantivessem verdes durante a passagem das centenas de limusines que chegavam para o grande encontro. Pelo ar, dezenas de helicópteros faziam fila para pousar num dos quatro heliportos do Palácio.

Quando todos estava devidamente instalados em suas cadeiras no salão principal (onde, aliás, fora enterrado o próprio Tenório Silveira II), deu-se início de fato o encontro. Após o discurso de abertura, proferido por Tito Silveira, prolífico e barítono, Garvásio Silveira pediu a palavra. Ele era o responsável pelos Recursos Humanos da família. Enquanto ele se punha no púlpito e se preparava para discursar, entretanto, um estrondo veio da porta e chamou a atenção de todos. Era Yordanov:

– Desculpa a intromissão, senhor, mas eu só queria servir suco a todos os presentes.

O suco de Yordanov era famoso por acalmar os nervos, dar disposição e limpar o organismo, além de ajudar no emagrecimento e dar mais capacidade mental. Assim que todos estavam munidos de seus copos, um grande brinde foi proposto e a reunião rapidamente se dispersou. Ninguém se importava de não saber como nem desde quando Yordanov estava na família, desde que ele continuasse sempre servindo seu suco em toda e qualquer circunstância.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Apequenação ou soberba?

O sucesso de uma empreitada é proporcional à quantidade de atenção a ela dedicada. Esta velha máxima vale para tudo na vida, das relações interpessoais aos planos de carreira, da reforma do apartamento ao planejamento de uma viagem. No futebol não seria diferente.

O sucesso em um campeonato é proporcional à dedicação dos jogadores a cada partida. Um time que se dedica todo jogo chegará ao final do certame campeoníssimo, coisa que fez o São Paulo no tri 06/07/08. Um time que se dedica somente durante meio campeonato depende da não-dedicação de todas as outras equipes para sair vencedor, coisa que fez o Flamengo no ano passado.

Coisa que o Flamengo vez fazendo, aliás, há mais de dez anos.

Eu, do alto das minhas duas décadas de vida, nunca vi o Flamengo ser campeão de alguma coisa com relativa antecedência. O time sempre deixa para o final, valendo-se do lema “deixou chegar, fo**u”. Eu me pergunto: precisa ser assim? Precisa levar as emoções da Magnética sempre ao limite? A resposta é não. Um grande e sonoro não.

O Flamengo tem time para vencer qualquer time do mundo. Dirão os mais exaltados que estou exagerando, mas qualquer análise um pouco menos fanática chegaria na mesma conclusão. O goleiro é falastrão, mas pega bolas impossíveis (quando quer). A zaga já foi considerada impenetrável há menos de um ano, e o garoto David é capaz de anular qualquer atacante que está por aí (quando quer, vide jogo do último fim de semana). Maldonado e Kléberson são jogadores de seleção, que arrebentam quando querem. Willians foi o maior roubador de bola do último Brasileirão; já provou que pode ser um excelente jogador (quando quer). Os laterais têm em seu portfólio partidas excepcionais, mesmo que sejam apenas esporádicas (ou seja, quando eles querem). Adriano já resolveu jogos até para a seleção brasileira, e Vágner Love pode ser um monstro (quando quer).

Reparou no que sempre se repete quando se fala destes jogadores? Sim, quando eles querem eles podem ser fenomenais.

Por que, então, tanta preguiça? Por que deixar sempre tudo para a última hora, para a cobrança de falta do Pet aos 43 do segundo tempo? Seria excesso de soberba, um sentimento mesquinho de que podem ganhar a qualquer hora? Um sentimento – idiota, aliás – de que basta os caras combinarem uma jogada ali no meio-campo, na hora, que o gol sairá? Seja o que for, não consigo entender.

Perder para o campeão chileno em casa numa Libertadores não é vergonhoso. Perder jogando bisonhamente para qualquer time do mundo é vergonhoso. O Flamengo ontem foi tosco, foi pequeno, medroso. Fosse um XV de Jaú no lugar do Universidad de Chile e o resultado seria igual. Não houve combate nem pegada. Não houve sequer violência, demonstrando irritação por estar perdendo de forma tão estúpida. Seria entendível se fosse um amistoso de pré-temporada, não um jogo de quartas-de-final de Copa Libertadores da América.

Confesso que nunca vi um time entrar em campo com quatro volantes, sobretudo jogando num Maracanã lotado. E se tivesse visto, garanto com certeza que este time não estaria perdendo de 2 a 0 com menos de meia hora de partida. Foi ridículo, vergonhoso e irritante. Sorte que tem a partida de volta e flamenguista é bicho ruim: não abandona o time nunca.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O Dunga é medroso

Coerência. Ô palavrinha sem-vergonha. Eu tento ser um cara coerente todo o tempo, na vida, nas atitudes e até no jeito de me vestir. Pessoas coerentes são confiáveis. Elas raramente surgem com alguma surpresa desagradável, raramente têm alguma mudança de humor repentina. Todo mundo deveria ser coerente. Todos, menos o técnico da seleção brasileira de futebol.

Não há nada de errado em querer formar um time. Sempre concordei com o Dunga nesse quesito. Ter um time é ter o controle da situação, é ter a confiança de um grupo e a certeza de que qualquer que seja sua ordem ela será atendida. Só que a convocação de ontem mostrou uma característica do nosso comandante que era talvez a última que alguém poderia dele esperar: medo.

Sim, medo. Dunga teve medo de arriscar. Medo de perder o controle da família que ele formou. Medo de chamar Ganso e Neymar e eles, sob a tutela de Robinho, o fazerem perder a liderança conquistada. Claro, porque liderança carismática é muito mais eficiente e aceita do que liderança imposta pela força. Ou alguém aí acredita que o Dunga tem um pingo sequer de carisma?

É só ver que o time do Anão não tem nenhum jogador fanfarrão, tirando o mala do Robson de Souza. Não tem nenhum Romário ou Denílson ou Júnior Baiano ou mesmo Ronaldinho Gaúcho; nenhum cara que puxe a roda de samba e seja capaz de puxar coro contra o sistema. Tem o Robinho, sim, mas parece claro que eles combinaram que na presença de Dunga o ciclista precisa baixar a bola. Todos os convocados para a Copa são pechas do comandante.

Isso pode funcionar, e espero sinceramente que o faça. Não que esteja torcendo pelo sucesso do Dunga – coisa que admitidamente fiz lá pelos idos de 2006 –, mas pelo hexa do Brasil. Sou torcedor à moda antiga, que não abandona o time nem sob a tortura da derrota para Argentina. Desconcordei com várias peças do elenco, chamadas ou faltantes, e fiquei absolutamente desapontado com a covardia do treinador, mas Brasil é Brasil e eu só deixaria de torcer pelo nosso país num hipotético jogo contra o Flamengo.

Vitor; Léo Moura, Alex, Miranda e Marcelo; Hernanes, Lucas, Ganso e Ronaldinho Gaúcho; Adriano e Neymar. A seleção convocada contra esse time que está aí: quem leva?

terça-feira, 11 de maio de 2010

Convoca, Dunga!

Que rufem os tambores! É hoje que sai a convocação da seleção para a Copa, finalmente. É a mais esperada convocação de todos os tempos, até porque toda Copa do Mundo que está por vir é sempre a mais esperada de todos os tempos. E tendo Dunga como técnico não ajuda em nada.

Ele convocou nada menos do que 89 jogadores de 2006 para cá. Vestiram a amarelinha nomes como Afonso Alves (titular absoluto em algumas partidas, hoje no Qatar), Hulk (atacante do Porto, que só ouve falar quem acompanha o campeonato português bem de perto) e Fernando Menegazzo (quem?). Sem contar com Gilberto Silva e Josué, craques de outrora e que muito provavelmente estarão na lista de mais tarde, mas que nem sempre são titulares em seus times na Grécia e na Alemanha.

Alguns chamam isso de coerência, de padrão, de confiança. Eu chamo de burrice. Tudo bem que um time de futebol precisa ser uma equipe, todo mundo se conhecendo só de olhar e aquela ladainha toda. Mas também é preciso levar em conta que para ser campeão do mundo é necessário vencer apenas sete jogos. Sete. Quem joga pelada sabe que se você botar todos os caras da turma que sabem jogar bola no mesmo time será goleada na certa. Faça isso a cada jogo e você terá um time campeão.

Sem falar que só temos jogadores estrangeiros. Tirando um ou outro potencial reserva, mais conhecidos como Kléberson e Adriano (que devem estar de joelhos neste momento, rezando para o Dunga manter sua burra coerência e convocá-los), nossos players todos jogam no exterior. Numa boa: que graça tem isso? A sorte da CBF é que o povo brasileiro é um povo metido, que adora se exibir para os anglo-saxões. Nada melhor para nós, terceiro-mundistas, do que ser campeão do mundo com os melhores jogadores das ligas deles, primeiro-mundistas. Papo sociológico, enfim.

Já falei e vou repetir: quando eu for presidente do Brasil, minha primeira medida provisória (não se faz lei neste país do provisório) será a obrigação de todo jogador da seleção brasileira atuar em solo tupiniquim – logo depois de autorizar o SUS a fazer implantes de silicone, mas isso fica para outro texto. Sim, para jogar no Brasil só jogando no Brasil. Isso vai ser melhor para todo mundo. Explico.

Jogar na seleção é uma honra, ou pelo menos assim deveria ser. Ser convocado é o ponto máximo da carreira de um jogador, e ser convocado para a seleção brasileira é o ponto máximo do ponto máximo da carreira de um jogador. Logo se vê que basta um brasileiro se naturalizar em outro país para jogar na seleção deste. Sendo assim, só jogará na seleção aquele que realmente quiser. Você, jogador, pode sair do país, ficar rico jogando no Barça ou nos Emirados Árabes, mas esteja ciente de que daí nada de seleção para você. Ou a glória pessoal de vestir a camisa amarelinha ou a satisfação pessoal de encher as bufas de dinheiro. Escolha.

Desse jeito só ficarão por aqui aqueles que sentem orgulho de ser lembrado pelo técnico do Brasil. Poderemos não ter a mais forte das seleções, com Kaká, Juan ou Dani Alves, mas teremos somente jogadores que vestirão a camisa com um orgulho pirata e farão de tudo para representar o país da melhor maneira possível. Não estou insinuando que estes craques não dão o melhor de si quando jogando pelo Brasil, mas que se precisar tirar o pé para evitar uma lesão que poderá fazê-los perder algum contrato eles o farão sem o menor pudor.

Não é desse tipo de jogador frutinha que o Brasil precisa. Não precisamos de Adriano, craque mas que corre para chorar no colo da mamãe toda vez que não é lembrado. A seleção precisa de gente que dá o sangue, que se machuca, que não liga para o que pode acontecer depois, que vive só para a vitória aqui e agora. Cada jogo é uma batalha, cada jogo é uma final. É disso que o Brasil precisa.

Vágner Love neles.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Flamengo campeão da Libertadores 2010

Regozijai-vos, novos senhores da América. Depois de uma primeira fase menos que mediana, o Flamengo buscou forças no Olimpo Oitentista para se reestruturar e finalmente reconquistas a Taça Libertadores da América. O caminho, porém, não foi dos mais fáceis.

Depois de uma primeira fase pífia, com nossos players jogando como se fosse um carioqueta qualquer, houve uma mudança de mentalidade a partir das oitavas de final. Mais precisamente a partir do intervalo do segundo jogo contra o Corinthians, no Pacaembu. E aí, já sabe: deixou chegar, agüenta.

Neste jogo o time foi aos vestiários para o intervalo de cabeças baixas, perdendo de 2 a 0 e com atuações abaixo da média. David, esse monstro que na final de ontem só faltou rugir, havia feito gol contra e deixado Ronaldo livre para marcar. Quem diria!

No intervalo o mão santa Lourenço sacou um apagado Vinícius Pacheco para dar uma chance ao bicampeão do mundo Kléberson. Exatamente o que o Xaropinho precisava para chamar a atenção do Dunga pouco dias antes da convocação.

Ele entrou e deu nova cara ao time. Marcava, puxava contra-ataques, dava bons passes... Foi dele o toque sutil para o gol salvador de Vágner Love (outro monstro). Mas o mais importante nessa volta do vestiário foi a mudança de atitude de todos os jogadores. Eles entraram com mais garra, mostrando vontade de vencer. Bruno que é o Bruno deu um tempo com suas ceras infindáveis, apesar de ter tomado amarelo. O Juan dava botes inacreditáveis para um rapaz daquele tamanho. Até o Adriano resolveu jogar um pouquinho, pra variar – mas só um pouquinho, bem pouquinho.

A partir daí foi aquela velha história. Deixaram o Flamengo chegar, fica difícil de segurar. As quartas foram moleza, contra o cheio de soberba Universidad de Chile. Eles acharam que poderiam anular nossos guerreiros tal qual fizeram durante a primeira fase. Ledo engano. No mata-mata não tem pra ninguém: o Mengão doutrina. O 4 a 0 no Maracanã foi pouco.

A semi, contra um desinteressado Chivas, só não foi mais fácil porque a fácil passagem pelas quartas-de-final deixou os jogadores com o velho salto alto. A derrota no primeiro jogo foi importante para restabelecer a mentalidade do sapatinho-mor – o culminou com uma acachapante vitória no campo dos ticanos.

Ontem foi inacreditável. Ninguém esperava um Estudiantes tão mole no primeiro jogo, ainda mais após terem vencido o Cruzeiro de forma tão humilhante. Os 2 a 0 do Mengão foram pouco e o sofrimento na grande final foi até o último minuto. Graças a Zeus os russos deixaram nosso artilheiro do amor ficar e graças à favela onde ele cresceu que o cara é tão flamenguista. Aquele gol foi de explodir corações, de desestabilizar estruturas. Valeu Love, valeu Mengão. Agora é rumo ao bi do Mundial.

*Eu sei que pode parecer um pouco pretensioso da minha parte, uma confiança exagerada, mas Nostradamus falou comigo durante um sonho. Nunca estive tão certo de uma profecia.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Unha sobrando eu compro!

Quem tiver unhas sobrando eu compro. Nem meus dedos mais são suficientes. Há tempo não sinto uma expectativa assim, capaz de provocar uma auto-mutilação. Talvez porque há tempos não tenho obrigações durante o dia e podia me ocupar somente com o Mengão. Agora não. Agora tenho outras coisas para fazer e posso dizer: é complicado fazê-las sem tirar o jogo da cabeça.

Talvez esse seja um vício meio bobo, torcer para um time de futebol. Os caras nem sabem quem eu sou! E, mais do que isso, a maioria ali não quer nem saber do time, só do dinheiro. Mas só quem é Flamengo sabe que essa paixão não tem explicação. Não há como dizer, como fazem os torcedores dos times menores, onde foi que tudo começou. Simplesmente começou, e uma vez Flamengo, Flamengo até morrer.

Hoje de noite tem mais uma batalha. O jogo mais importante do ano até agora. Ganhar dos gambás mal-vestidos é necessidade, pelo bem do futebol brasileiro. A vantagem já foi construída no pantanal instalado no Maraca semana passada, agora os caras precisam ter consciência de que o ataque é que é a melhor defesa. Basta fazer um gol para obrigar os sem-passaporte a fazer três. E com Ronaldo pesando a balança pro nosso lado todo mundo sabe que isso é impossível.

Mais uma vez estaremos aqui fazendo a nossa parte. Os dois mil guerreiros que vão agüentar a pressão lá no Paulo Machado de Carvalho merecem menção honrosa, mas hoje todo e qualquer torcedor, em qualquer canto do Brasil, será fundamental. Seja no estádio, pela TV ou com o ouvido colado no radinho de pilha, o importante é passar energia positiva.

Papel de torcedor é esse, apoiar não importa as intempéries. Deixa que no campo o Império do Amor resolve.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Ansioso demais pra escrever com coerência

Lembro de pouquíssimos duelos entre Flamengo e Corinthians. Um deles é o 3 x 0 no returno do Brasileirão 2006. Do time atual, Bruno, Juan, Léo Moura, Toró, Léo Medeiros e V. Pacheco estavam lá. Além de mim, é claro.

Engraçado que eu tinha a impressão claríssima de que esse tinha sido o jogo do Obina. Para mim ele tinha feito os três e perdido mais uns cinco – algo bem típico dele. Mas não. Pesquisando na internet fui lembrado que os gols foram marcados por Léo Medeiros, Renato Abreu e Juan.

O jogo me foi marcante, além do fato de eu estar presente no Maracanã, porque o Corinthians era o atual campeão brasileiro e o Fla já não brigava por nada. Não foi nem um campeonato pífio, como havia sido nos anos anteriores, nem teve nada de empolgante. Éramos já campeões da Copa do Brasil (a partida foi em outubro, se não me engano) e os concorrentes ao rebaixamento travavam uma briga fervorosa para ver quem iria para a Série B no ano seguinte. Ganhar do Corinthians, portanto, foi um mero caso de tiração de sarro extratemporal.

Hoje à noite tudo é diferente. O campeonato vale – e muito! O resultado vai decidir a vida dos nossos guerreiros, principalmente pelo período conturbado que vivemos. Uma vitória joga a responsabilidade pro lado de lá e alivia o nosso lado; uma goleada trará de volta o apoio da cartolada; e a derrota não é sequer cogitada.

Quem não acredita em entidades divinas, essa é a hora de se arrepender. Quem acredita, que apele pro seu santo, pai-de-santo ou deus do sol – qualquer ajuda agora é bem vinda. O importante é que nós, torcedores, jamais deixemos de acreditar. O cariocada está fazendo a parte dela, comprando todos os ingressos disponíveis. Aqui, de longe, só que resta fazer é mandar energia positiva e torcer. Muito.

Nota: foi no campeonato de 2006 que a desgraça do Santa Cruz começou. Foram tri-rebaixados, chegando à Serie D já em 2009. Roubaram o posto do Flor.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Twister on the bus

Pegar ônibus em horário de rush é uma experiência de vida. Há anos que eu não fazia isso. Não por falta de necessidade, já que carro deixou de ser realidade minha há algum tempo, mas porque prefiro sair de casa mais cedo ou chegar mais tarde a me espremer num veículo automotor.

As pessoas têm um comportamento completamente diferente no ônibus das 18h. Se você pega o Inter 2 às quatro da tarde todo mundo espera o desembarque, os velhinhos têm lugar garantido e dificilmente algum folgado vai ficar roçando a perna em você a cada curva. Às seis, tudo muda. Parece que todas as convenções vão abaixo e toda a educação aprendida em casa e na escola perde a serventia.

Não há desembarque no busão da 18h. Um expectador veria uma movimentação intensa no interior do veículo, porém em nenhum momento qualquer espaço vazio. Para cada pessoa que desce, outra já está pronta para ocupar o lugar deixado para trás. A substituição dos passageiros se dá em tempo-real.

Outra coisa é que não há assento preferencial para deficientes, idosos e gestantes no ônibus do rush. Primeiro porque nenhum deles conseguiria chegar ileso até um lugar para sentar; e segundo porque não há espaço físico suficiente para uma pessoa se levantar enquanto outra senta. Alguém teria que dividir o banco com o motorista enquanto a transferência de assentos lá atrás acontecesse.

Vejo o ônibus como um tubo de ensaio, daqueles dos laboratórios de pesquisa. Durante o dia, fora dos horários de pico, os tubos – os ônibus – são usados para pesquisas corriqueiras, simples olhadelas na água do Rio Belém a procura de bactérias. Na hora do rush, porém, são feitos experimentos para encontrar a cura do câncer. Misturas inacreditáveis, que elevam a pressão dentro dos vidrinhos a valores absurdos.

É nessa hora que uma das leis fundamentais da física – a que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo – cai por água. No ônibus das seis, dois ou mais corpos ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo tranquilamente. É como aquele joguinho antigo, o Twister, só que a o invés de bolinhas coloridas você tem que botar sua mão esquerda na segunda barra de cima, o pé direito entre os dois bancos à frente, o pé esquerdo...

sábado, 13 de março de 2010

Atropelaram uma marmota

Atropelaram uma marmota. Por mais banal que possa parecer, foi a primeira vez na história que isso aconteceu. A comoção foi geral. Quando os jornais anunciaram que uma marmota havia sido atropelada na altura do quilômetro 120 da Rodovia Marechal Polaco, até o Greenpeace apareceu. Onde já se viu, atropelar uma marmota?

Várias perguntas pairavam no ar: por que raios só agora, depois de milhões de anos de escala evolutiva e outras tantas centenas da existência dos carros (se considerarmos os carros-de-boi), uma marmota foi atropelada? Será que as marmotas são tão cuidadosas que nunca atravessam a rua sem olhar para os dois lados? Será que são tão retraídas a ponto de evitarem o contato com o público? Coisas que num primeiro momento ficavam sem resposta.

Após alguns dias de aturdimento generalizado, entretanto, instaurou-se uma CPI no Senado para apurar o caso. A pressão de certas camadas da sociedade foi tamanha que até o Presidente da República interveio: foi recomendado que se paralisassem quaisquer votações na Casa até que o caso do atropelamento da marmota fosse enfim resolvido. Todos os Senadores, de situação e oposição, se propuseram a ajudar.

Contra o motorista foi expedido um mandato de prisão preventiva; o animal falecido foi levado ao IML de um município próximo ao quilômetro 120 da Rodovia Marechal Polaco para a realização de exames. Fotos do local do acidente foram apresentadas como evidência e legistas examinavam-nas exaustivamente. No Fantástico, por fim, foi exibido um vídeo amador exclusivo que supostamente mostrava a hora exata do atropelamento. Isso caiu como uma bomba na sociedade.

A opinião pública ficou dividida: se por um lado alguns acusavam o motorista de desatenção e despreparo, outros diziam ser da marmota a culpa por tamanho descuido na hora de cruzar uma rodovia. Passeatas foram deflagradas, piquetes realizados, abaixo-assinados propostos. Todos queriam respostas, e respostas imediatas. Ou o motorista seria preso e a sociedade entenderia que crimes hediondos como esse não ficam impunes no Brasil ou a marmota seria reconhecida como mártir, passando a representar todos os bichos que sofrem com a crueldade e indiferença do Homem.

Um acontecimento, porém, fez o caso cair no completo esquecimento: começou a Copa do Mundo.

quinta-feira, 11 de março de 2010

A partida de Fred

De todos que ali viviam, Fred era o último que alguém desejava que partisse desta para melhor. Sujeito decente, educado, trabalhador, não tinha rabo preso com ninguém. Apesar de longe do estereótipo de atleta, não bebia, odiava cigarros e praticava diariamente longas caminhadas. Não destratava nenhum à sua volta e jamais teve algum inimigo. Era uma mistura de Longfellow Deeds com Pee-Wee Herman, sem contar um quê de Francisco de Assis para com os animais.

Conta-se que uma vez Fred foi chamado à corte às pressas pelo juiz local. Não que tivesse feito algo de errado: o magistrado era um velho amigo que o considerava perfeito para ponderar e mediar um eventual acordo entre as partes em litígio. Não há como se verificar a veracidade dessa informação, mas este é o tipo de anedotas que se contam sobre a importância do rapaz no município.

Sem dúvidas ele deixará saudades. Seu jeito simpático invariavelmente conquistava de velhinhas moradores de rua, de políticos a drogados participantes do programa por ele assistido. Suas visitas mensais ao orfanato da cidade eram mais do que ansiadas. Foi nomeado membro honorário do Rotary Club e da Academia Municipal de Letras sem jamais ter sequer botado os pés uma qualquer uma das duas associações. Fred certamente era mais do que bem quisto pela população.

Seus amigos mais próximos sentirão falta dos saraus que ele costumava organizar, muitos deles com motivações filantrópicas. Ficarão orfãs também de alguém que conseguia com tanta facilidade juntar pessoas para uma inocente partida de Imagem & Ação. Era Fred, por exemplo, quem sempre tinha uma carta na manga para domingos chuvosos, quermesses adiadas ou até mesmo primeiro dia de férias coletivas.

Na ocasião de sua partida, a comoção foi generalizada. Centenas de pessoas acompanharam-no, aos prantos, até o último momento possível. Todos se esvaiam em lágrimas, inclusive bad-boys e lenhadores. Era uma pessoa querida que os amigos perdiam, uma figura histórica que ficará para sempre na memória da cidade.

Em meio a inúmeras coroas de flores, uma enorme faixa patrocinada pela prefeitura resumia o sentimento de todos ali presente. Ela continha os seguintes dizeres:

"Fred Astaire de Oliveira, filho ilustre do município de Santana do Livramento do Sudoeste: sua passagem por nossa terra foi marcante. Nada que um dia aconteceu ou um dia virá a acontecer conseguirá apagar você das nossas memórias. Todo habitante de nosso humilde povoado foi, de uma forma ou de outra, tocado por você, por suas palavras de apoio, por seu incansável desejo de ajudar, por seu infinito sentimento humanitário.

"Fica aqui o desejo de todos para que seu legado permaneça. Que tudo aquilo que você um dia semeou e continuava por fazer até o último instante floresça e gere novos frutos. Que Deus esteja ao seu lado nesta nova etapa, e que seu exemplo seja para sempre seguido pelo bem da nossa população.

"Fred Astaire de Oliveira, obrigado por ser o primeiro Santanense a ingressar numa faculdade. Boa sorte em São Paulo.

"(Povo de Santana do Livramento do Sudoeste)."

terça-feira, 9 de março de 2010

Acidentes acontecem

À parte da tristeza e o sentimento de infortúnio causados, o acidente no futsal do último sábado (que acabou matando o jogador Robson Rocha Castro) serviu para indignar ainda mais os anti-moralistas. Vale frisar que a perda de um atleta AND um ser humano não tem nada que ser comemorado, e que se Deus existisse coisas como essas não aconteceriam. O que indigna os anti-moralistas é o fato de já terem iniciado o processo de caça às bruxas num caso desse.

Um acidente - e é bom que fique bem claro que acidente significa uma casualidade, uma fatalidade imprevista - tem culpados? Bom, sim, se considerarmos que a causa do acidente tenha sido negligência. Mas, por outro lado, mesmo que tenha havido negligência, a resposta pode ser não, pois um acidente poderia acontecer com qualquer um e a qualquer momento - e a negligência, portanto, não seria um fato assim tão determinante.

O ponto aqui é que a força-tarefa empregada na caça-às-bruxas-pós-acidente é diretamente proporcional ao status adquirido pelo desafortunado acidentado. Se em Barretos morre o cantor que estava assistindo ao rodeio na área VIP, o dono do touro é preso em menos de dois dias, e não sem antes processarem toda a linhagem do animal (o de chifres [o touro!]) e seus respectivos criadores. Se morre o Palhaço responsável por desamarrar o saco do bicho, coitado, mal rezam-lhe duas ave-marias.

E não que o saudoso Robson fosse famoso. Pelo contrário. Muitos que leram "o saudoso Robson" na frase anterior tiveram que pensar por alguns segundos ou mesmo recorrer ao primeiro parágrafo do texto para saber de quem se tratava. O jogador falecido não era nem um pouco famoso, ao menos fora das rodinhas especializadas. Mas foi um acidente inusitado. Não é todo dia que alguém morre por dar um carrinho numa quadra de futsal. E, como tudo o que é inusitado, o episódio ganhou as mídias numa velocidade que nem Euller, o Filho do Vento, conseguiria atingir.

Está na mídia, é celebridade; é celebridade, exige respostas rápidas. "Já estamos verificando as circunstâncias e em pouco tempo teremos o nome do responsável", disse a delegada responsável pelo caso. A pergunta: para que se necessita de uma delegada num caso assim? E "responsável pelo caso"? Certo, é claro que é primordial averiguar qualquer caso de negligência, mas já foi noticiado uma centena de vezes que o ginásio onde ocorreu a partida não só tinha permissão para sediar jogos como recebia uma avaliação semestral da Defesa Civil. Isso, por si só, não seria suficiente para isentar qualquer um que não da própria Defesa Civil de uma responsabilidade? E se o único "culpado" pode ter sido alguém da Defesa Civil, órgão do governo, que eles se entendam entre si e deixem de atormentar os responsáveis pelo ginásio e suas famílias com ameaças de prisão.

Acidentes acontecem. Tanto foi com Robson como poderia acontecer com qualquer um. E poderia não ser fatal, até. E poderia nunca acontecer. Essas coisas se dão por combinações de fatores jamais imagináveis - daí ser chamado de acidente. Robson Rocha Costa estava no lugar errado, na hora errada. Era um jogo festivo e ele poderia nem sequer ter sido chamado. Acontece, como poderia acontecer comigo ou com você ou com seu tio com sobrepeso, que tanto jogamos em quadras sem qualquer avaliação de Defesa alguma, que dirá a Civil.

Acidentes são apenas formas aleatórias de Deus fazer sua seleção natural.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Imoral é que é legal

O moralismo faz de tudo para ser odiado. Não é mais preciso ser liberal paz-e-amor-bicho para odiar algumas atitudes dos chamados moralistas. Pegue a tão comentada propaganda da cerveja Devassa, por exemplo. Se ainda não a viu, procure no You Tube: não tem absolutamente nada demais. A Dona Carminha, famosa alguns anos atrás, era muito - mas muito! - mais ousada e sexy do que a atual.

E, verdade seja dita, isso não é só porque a Paris Hilton é completamente insossa enquanto Dona Carminha era um avião. A propaganda não tem nada de extraordinário e ponto. Ela simplesmente não é capaz de fazer um garotão em seus férteis 14 anos deixar de lado Malhação ID correr para o banheiro. Se ele o fizer, aliás, será mais por causa da novelinha do que pelas imagens da Dona Hilton se refrescando com uma lata de cerveja.

O comercial foi proibido por conta das "poses sensuais, consideradas exageradas por consumidores". Fala sério? No país do Carnaval? Não sei de que consumidores eles estão falando. Quem tem Big Brother na TV aberta não se indigna com mais nada. Quer mais apelação do que Big Brother e a tal da Fazenda? Ver mulheres ensaboando umas às outras é moral enquanto uma loira aguada insinuando algo pateticamente sexy não? O Conar que me conte quem foram o consumidores que consideraram as "poses sensuais exageradas" que vou mandar-lhes o endereço do seminário mais próximo.

Outro assunto muito em voga ultimamente é o chapéu dado por Neymar no zagueiro Chicão, do Corinthians. Num lance já parado pelo juiz, a sensação do Santos puxou a bola por cima de um desesperado Chicão, que repreendeu o rapaz com palavras que seriam proibidas pelo Conar sem dó nem piedade. Aí vem aquela velha pergunta: e daí?

Qualquer um que joga pelada aqui sabe que futebol teria bem menos graça se não fosse o sarro que se tira dos adversários depois do jogo. O legal é se reunir em volta da mesa e ficar lembrando os lances da partida. "E aquela caneta que eu dei no Fulano? Humilhei". Querem tirar isso do futebol profissional. Querem dar amarelo se o cara inventa de dar um drible da vaca na lateral de campo, alegando que foi sem objetividade.

Objetividade, seu juiz? O objetivo é ter motivo para risadas depois, no bar. Porque não sei se o senhor sabe, mas jogador de futebol é tudo amigo. Acabou o jogo, bora pro bar tomar uma e comentar os lances de efeito. Se eles brigam durante alguma partida é porque isso é algo absolutamente normal. Pais ficam meses sem falar com os filhos depois de uma pelada na praia. Coisas do futebol. Ninguém quer perder, porém todos querem humilhar. Os humilhados nem sempre levam na esportiva.

Parem de falar que o cara faz firula e vejam futebol com os olhos de uma criança. Não há que julgar pela objetividade, e sim pela beleza do espetáculo. A moralização - do futebol, da televisão, do que quer que seja - só serve para banalizar. Se tudo for feito com a moralidade do Conar nada mais terá a menor graça.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Tio Joel e o amor

Quem já ouviu falar do Tio Joel sabe que sabedoria popular é seu sobrenome. São deles todos aqueles conselhos úteis e precisos sobre como tirar a mancha do carpete ou se livrar do chulé usando apenas casca de laranja e azeite de oliva (desde que, claro, o azeite seja extra-virgem). Dele nada escapa: a tosse contida de uma criança é suficiente para o doutor Tio Joel dizer que tipo de doença ela tem.

Quando diz respeito a relações inter-pessoais, porém, Tio Joel ataca em outra frente. Os conhecimentos continuam lá, porque um homem sábio é sempre um homem sábio, mas ele prefere fugir das dicas úteis e precisas da sabedoria popular para fazer o pupilo refletir usando a boa e velha filosofia popular.

Foi assim quando alguém resolveu perguntar-lhe o que era o amor.

"Filho, o amor é uma coisa complicada. Eu poderia te enrolar aqui dizendo aquelas bobeiras de que amor é quando um olhar encontra o outro e as mãos começam a suar e o coração bate mais rápido e os pés formigam e o estômago entra em parafuso e você, naquele momento, sabe que é ela. Não tem nada disso. Ou tem, mas não acontece tudo de uma vez e não tão de repente assim.

"Quando o amor acontece, você olha para ela e acha que é, mas não tem certeza alguma. Você dá aquela olhada meio de lado, uma giradinha na cabeça meio que pensando 'mas que...?' e vai fazer outra coisa. Quando você menos espera, pode ser no ônibus, arrumando o sifão da pia ou no meio daquele copo de whisky (Tio Joel adora referências pop), ela aparece na sua mente. Puf! E mais uma vez você pensa 'mas que...?', dá uma chacoalhada para ver se bota as idéias em ordem novamente e segue a vida.

"Depois de um tempo, meu filho, essas aparições ficam mais constantes. Você faz menos a pergunta 'mas que...?' e quer estar com ela. Você quer ligar, mas não sabe o que falaria; você liga e desliga antes de ela atender; você manda recados esperando aquela resposta para a qual a tréplica já está até escrita. Se ela responde, ela te ama e o futuro é radioso, tenham vocês 14, 22 ou 40 anos. Se ela não responde, você está sozinho nessa - e esse é o problema com o amor.

"O amor não te deixa. Nunca. Por isso acho que a palavra amor é tão banalizada: amor de verdade só existe um, e você nunca sabe onde e como irá encontrá-lo. Se você já achou o seu, ele vai lhe acompanhar pelo resto da vida, quer ela queria, quer não. Uns viram psicopatas por isso, mas a maioria segue a vida. Ficam tentando achar outro. Tentando e tentando, até que se contentam com menos e acabam se casando - como eu e sua tia.

"Eu tive um amor, mas ela não correspondeu. Por isso sei de tudo isso".