quinta-feira, 26 de junho de 2008

É tudo verdade

Trecho do depoimento (fictício) que o ex-baixista Tales de Mileto (fictício), da banda Sonoma (fictício) , deu para o documentário (fictício) sobre os irmão Polaco e Marcelinho (fictícios), líderes da banda, mortos durante o combate entre policiais e manifestante pró-aborto na capital da Mauritânia, em setembro de 1976 (fictício).

"Tinha outras coisas que os dois faziam bem. O teatro deles, por exemplo, era divertidíssimo. Aquilo que eles faziam com as mãos... que coisa magnífica! Cada um pegava uma bola e faziam-nas parecer flutuar. Seguravam na mão, na altura do peito, e de lá ela não saía, independente do movimento do corpo. Tinha um truque onde eles seguravam uma mesma bola, um pouco maior do que as outras, suspensa no ar. Aí, como se fosse um treinamento de boxe, socavam-na, mas sem deixá-la sair do lugar. Um era o sparring, o outro o pugilista. Dois artistas, com certeza.

Mas não era disso que falávamos, era? A música, certo. Pois é, um melhor do que o outro. Aquele baixinho, o Polaco, quando pegava na guitarra parecia se elevar ao Olimpo, ao lado de Hendrix e companhia limitada. Ficava ele e só ele na sala, mesmo que auditório estivesse lotado até os lustres. Seus dedos pareciam se mover sozinhos, como que controlados por máquinas. Não erravam uma nota, aquelas mãos. E o outro, o mais novo, não se igualava a ninguém no batuque. Qualquer coisa para ele dava som. Caixinha de fósforo, balde de lixo, pote de plástico... tanto faz, tudo virava uma imensa bateria. Lembro-me de uma vez, quando estávamos no sul (não me recordo exatamente a cidade), e ele pegou um chapéu de um velho que estava na platéia. A princípio ninguém entendeu nada, mas logo perceberam que só os gênios conseguiriam nos proporcionar aquela magia: o chapéu era de um material duro, provavelmente xepa prensada, e então Marcelinho percebeu que devido ao seu tamanho ressoaria como um velho surdo indiano. Não haverá percussionista igual a ele, definitivamente. Jamais.

Na verdade eles tinham um grande problema, que com certeza atingia mais a nós do que a eles: eram muito diferentes na personalidade. Tornava-se insuportável qualquer turnê país afora. As discussões começavam ainda no palco, durante o show, quando um ou outro entrava errado na música, e se seguiam noite afora, atingindo os garçons, as mesas vizinhas e o escambau. Se um não gostava de Martini, por exemplo, não admitia que o outro tomasse. Alguma coisa de ciúme, proteção, sei lá. Mas no fundo se davam bem, a gente percebia. Era como se precisassem das discussões para conviver, para funcionar. Quando ficavam muito tempo afastados – e consequentemente sem discutir – não conseguiam criar nada de novo. As brigas lhes faziam ferver alguma coisa, elas lhes acendiam algum canto criativo no cérebro.

Quando o Marcelinho começou com esse negócio de fumar e tal a gente alertava: 'para com isso menino, fumar não vai levar você a lugar nenhum'. Mas sabe como são os jovens, né? Ele dizia que se sentia o próprio John Bonhan quando ficava de cabeça feita. Não vou mentir: de fato ele alcançava novas percepções depois de fumar unzinho. Mas os chapados são foda. Eles precisam fumar o tempo todo pra não ficarem com sono. E o cara na bateria não poderia dormir, claro. No final das contas, a banda toda ficava chapadona com os cigarrinhos dele".

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Vou estar sonhando

Os sonhos são uma ótima fonte de inspiração para nós, pseudo-cronistas. Diria que se o cão é o melhor amigo do homem, o sonho é o melhor amigo do pseudo-cronista. Principalmente quando falta assunto polêmico para suscitar polêmicas no espaço (buraco) nosso de cada dia. O problema é quando os sonhos insistem em ser recorrentes. Eu, por exemplo, tenho uma forte queda por atendentes de telemarketing. Ontem, mais uma vez, estive sonhando com essas incríveis criaturas.

Não sei o que acontece. Volta e meia essas criaturas me atormentam durante o sono. Acho que desta vez foi porque estou na iminência – só não o fiz ainda por preguiça – de ligar para a TIM para reclamar de uma cobrança indevida e, claro, absurda na minha conta desse mês. Não quero nem ver quantas vezes elas vão estar transferindo a minha ligação. Tudo por causa de um disque-sexo, que é óbvio que eu não liguei (juro).

Aí acordei pensando "caramba, to sem assunto e não posso escrever de novo sobre telemarketing". Caros leitores, um alerta: buscar uma solução para uma enrascada dessas às 6h45 da manhã, um dia depois de um jogo pífio da seleção brasileira (mas que, como era contra a Argentina, vira sinônimo de churrasco), não é para qualquer um. Pensei, pensei, pensei e tudo o que consegui foi ficar mais irritado ainda com essas moçoilas.

Tá certo, é mentira. Minha reflexão me levou a pelo menos uma dúvida, o que já é grande coisa se levar em conta o horário nada favorável. É sempre bom lembrar que todo questionamento leva a uma pesquisa, e que essa pesquisa, por sua vez, produz um conhecimento científico. Não é para tanto, mas vamos à ela: o gerúndio existe na língua portuguesa e é perfeitamente aceito nos meios eruditos, certo? É uma forma verbal como qualquer outra, inclusive essencial em construções do tipo "olhe, seu filho está espancando o meu". O problema dele, do gerúndio, é que normalmente é usado de forma incomum por pessoas irritantes num momento em que a ira é algo mais do que natural para pelo menos um dos interlocutores (quando não ambos). Já falei disso por aqui, é o tal de traduzir a expressão em inglês I will be transferring ao pé da letra. Vira eu vou estar transferindo, claro.

A grande questão. Vamos à ela, finalmente: será que não existe momento certo na língua portuguesa para usar a famigerada construção "verbo no infinitivo + verbo no gerúndio"?

Tem que haver, gente. Não é uma construção totalmente errada do ponto de vista gramatical – pode perguntar para o professor Pasquale Cipro Neto. É uma expressão comumente execrada porque é normalmente usada por pessoas chatas, feias, bobas e burras na hora menos bem-vinda possível, e, como se não bastasse, só e tão somente no lugar da linguagem direta (vou estar transferindo ao invés de vou transferir). Pensei, pensei, pensei e tudo o que consegui foi ficar mais irritado ainda com essas moçoilas.

Ok, mentira de novo. Achei uma situação, mas não garanto nem um pouco que ela esteja correta. Aliás, quem puder me corrigir que por favor o faça; não conseguirei dormir a noite com esse barulho saindo de trás do armário. Imagine a situação: dois amigos conversam sobre suas respectivas amantes, que por acaso são irmãs e moram juntas num loft ao lado da praça Rui Barbosa (isso não ecziste; é só um fruto da minha imaginação). Um deles pergunta "ei, cara, vamos na casa das meninas hoje, às 18h30?" E o outro responde: "Não posso, nobre colega. A essa hora eu preciso estar dirigindo até em casa senão minha mulher me mata. Ela já está desconfiada, sempre me liga para conferir se estou mesmo no trânsito. Vamos fazer como sempre, às 20h00, na hora da nossa 'aula de boliche'".

A história foi mera ilustração, mas diga: está certo, não está?

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Laranja mecânica

Vou manda um e-mail para o setor de comunicação da UEFA e pedir um teipe do jogo de hoje entre Holanda e França, pela Eurocopa. Vou mostrá-lo, principalmente o segundo tempo, para todas as pessoas envolvidas com futebol no Brasil, do roupeiro ao ponta-esquerda, do empresário ao garoto da água, do torcedor ao gandula, mas, acima de tudo, aos técnicos. Aquilo foi uma demonstração perfeita do que é futebol. Com romantismo e muita categoria.

O primeiro tempo acabou em um a zero para os holandeses. Até aí, tudo bem. Na volta do intervalo, a França foi com tudo para cima e envolveu a defesa laranja como o Sport fez com o Corinthians na quarta-feira. O que fez, então, Van Basten, o técnico da Holanda? Sacou um meia que estava um pouco sumido e colocou... um atacante! Foi a maior mostra de inteligência e visão de jogo que vi nos últimos tempos, e seguindo a velha (e ótima) máxima de que o ataque é a melhor defesa. Resultado: dois minutos depois da substituição, 2 a 0 Holanda, gol de Van Persie, o cara que tinha acabado de entrar.

É a consagração do futebol-arte, do futebol verdadeiro. Se fosse no Brasil, num jogo qualquer de 2ª rodada de campeonato regional, o scout tiraria o atacante para reforçar a defesa. Mais um zagueiro ou um volante, tanto faz. Lá não. Holanda e França, clássico do futebol mundial, pela Eurocopa (que, dizem, é uma Copa do Mundo sem Brasil e Argentina) e o técnico subjuga a zaga para atacar mais.

Depois do gol, o jogo ficou mais aberto. Mais França no ataque, outro lance genial do técnico Marco Van Basten: tirou mais um meia e colocou outro atacante. Parecia loucura, mas deu resultado. Os franceses até fizeram um, com Henry, mas um minuto depois veio o terceiro da Holanda. Futebol é isso, é raça, é ataque. Um jogo jamais está ganho – ou perdido. A França lutou até o fim, até os 47 do segundo tempo, quando um golaço do Robben credenciou a Holanda como favorita pelo título.

Foi o tipo de jogo em que o time que ganhou mereceu ganhar, mas o time que perdeu não mereceu perder. Simplesmente lindo.

Não sei como estão dispostas as chaves para a fase final da Euro, mas se tudo correr bem teremos uma final entre Portugal e Holanda. Justamente os dois times que priorizam o ataque, mesmo que degringolando a defesa.

P.S.: Não entendo o termo “Holanda” em inglês. Às vezes é Holland, às vezes é Netherlands. Só que “holandês”, em inglês, é dutch. Vai saber o que se passa nessas cabeças imperialistas.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Gravidez precoce

Aproveitou o fuzuê que estava acontecendo na sala para dar a notícia:

- Pai, estou grávida!

Imediatamente, como num passe de mágica, os pratos pararam de voar e os palavrões cessaram. No ar, somente as penas do travesseiro que ainda caíam. A menina estava parada à porta, com as mãos nos bolsos da blusa e olhar atento. A mãe, ainda enrubescida de raiva, soltou um gritinho de susto e deixou um vaso, que logo serviria como arma, cair. O pai – esse não se agüentou:

- Pense bem no que você está falando, Marina.

Ela sabia o que aquilo queria dizer. Tinha no pai a figura de herói, o mocinho dos filmes de faroeste, mas sabia que deixá-lo bravo era a última coisa que alguém poderia desejar. Tinha imaginado como contar a gravidez à família durante os últimos dois meses, porém sempre desistia no último instante. Desta vez, não: pensou que, se os pais não estivessem com toda a atenção voltada a ela, o impacto da notícia seria menor. Ledo engano.

- M-mas pai...

- Não me venha com mas, menina. Isso que você está falando é muito sério. Tem certeza de que está grávida? – cortou ele, e Marina sabia que aquele tom manso no fundo escondia profunda irritação.

Ela estacou. Lembrou-se de quando falou ao pai que tinha reprovado de ano na escola. O velho ficou com tanta raiva que a castigou sistematicamente durante dois anos, até que Marina se tornou a melhor aluna da escola. O que viria agora? Tomaria-lhe o filho até que aprendesse que para ser mãe era preciso pelo menos experiência de vida, coisa que aos 17 anos quase ninguém tem? Marina fitava o pai com os olhos cheios de lágrimas.  Ele tremia, com os punhos cerrados e a testa enrugada, suando.

- Vamos lá, responda! – disse ele, sem piscar.

Marina, a essa hora, teve medo. A cara do pai era de psicopata. Imaginou-se prontamente sendo esquartejada no porão da casa, e o seu filho, retirado do útero com o tanto de vida que tivesse, descendo ao esgoto junto com a água da privada. Olhou para a mãe como que suplicando ajuda e viu a velha chorando. Depois disso não conseguiu mais se segurar e deixou uma lágrima escorrer-lhe o rosto.

- Pai, fica calmo, por favor!

- Eu estou calmo, Marina. Só quero que você responda: tem certeza de que está grávida? – respondeu o velho, sem sair da posição que estava desde que Marina entrou em casa.

Ela, então, desabou. Desmaiou por causa do desespero que o medo lhe causara. Ainda sentiu bater as costas no trinco da porta durante a queda, mas antes de chegar ao chão o mundo já lhe parecia escuro. Acordou horas depois, no hospital, e logo que abriu os olhos viu o rosto do pai suando a sua frente

- Você estava certa, Marina – disse-lhe ele. – Pedi para o médico fazer os exames e você está mesmo grávida.

Sem entender direito o que estava acontecendo e muito menos onde estava, a menina, aflita, respondeu:

- O que você vai fazer, pai?

- Como assim o que vou fazer? O que mais se há para fazer numa situação dessas?

Então o velho saiu a andar pelo consultório. Falava coisas do tipo "você não tem idéia do que isso significa" ou "quer que eu pense o que da minha filha ter um filho?", e a cada frase Marina se desesperava. Tentava se mexer para arrumar proteção, mas estava muito fraca por causa dos remédios e dos exames. Quando ameaçava desmaiar outra vez, o pai completou:

- Chamei toda a família. Vamos fazer uma festa de arromba hoje à noite, lá em casa. Precisamos comemorar! Meu primeiro neto... Quanta alegria, quanto orgulho!

E beijou Marina como nunca fizera antes.Nas bochechas, na testa, no nariz. O amor irradiava dos seus olhos, das suas palavras. Reconciliou-se com a mulher e saiu pelo hospital , saltitante. E abraçava todo mundo:

- Meu neto! Eu vou ter um neto! Sou o homem mais feliz do mundo...

A torcida sempre decide

Assisti ao jogo entre Boca Juniors e Fluminense por puro amor ao esporte. Gosto tanto de futebol que já vi até partida da segunda divisão do campeonato paulista de futebol society – imagina se perderia uma semifinal de Libertadores?

Fui um espectador decididamente técnico. Observei cada lance sem paixão alguma, apenas analisando os acontecimentos. Afinal de contas, para mim nem haveria para quem torcer sem cometer uma heresia: de um lado o Boca, que há 42 anos não era eliminado por um time brasileiro da Libertadores (além de ser da Argentina); do outro o Flu, que dispensa apresentações (sou Flamengo, mermão!). Mas esse jogo tinha algo especial. Uma coisa que me faz esquecer de tudo e de todos e apenas observar o espetáculo, mesmo que no campo esteja o meu rubro-negro: a torcida.

Não há nada mais lindo no mundo do que um estádio lotado. Já devo ter escrito isso outras vezes, mas não me canso de repetir. Não me interessa se é o Maracanã com 84 mil espectadores ou a Arena da Baixada com seus 17. O que importa é que não haja espaço em branco e nem gente calada. Tem que ter o tempo todo gritos, fogos, bandeiras, fantasias... O futebol é tão mais lindo quando mais animada está a torcia. E ontem, convenhamos, a torcida do Fluminense deu show. A multidão foi quem levou o time nas costas.

Deu gosto de ver o Fernando Henrique fazendo milagres à la Brunão. Melhor ainda admirar a habilidade do Conca e a classe do Tiago Neves. E o que falar da vontade daquele zagueiro, o tal Thiago? Eles não jogam assim. Quem vê futebol, quem acompanha e gosta, sabe que eles não são tudo isso. Ou melhor: poderiam até ser, mas estádio lotado é produto raro no Brasil. Foi a magia das arquibancadas que lhes deu forças. Experimente ver Fluminense e Palmeiras daqui a algumas semanas e tire suas próprias conclusões. Se a arquibancada estiver vazia, o Arouca não vai conseguir marcar nem o poste-matador Alex Mineiro, quanto mais o craque Valdívia. Ontem ele anulou nada mais nada menos que Juan Román Riquelme, o craque da camisa número 10.

O sono já bate à porta, mas não posso me deitar sem comentar sobre o personagem da noite. Todo mundo já vai saber quem é – se é que já não sabe – quando ler este texto. Ele será matéria de “boa tarde” do Globo Esporte, estará na capa de todos os jornais do Brasil e na Placar do mês, irá ao Bate-Bola, ao Bem Amigos e ao Rock Gol de Domingo e, se duvidar, consegue um contratinho milionário num clube qualquer das arábias (é, porque com 34 anos ninguém da Europa vai querer contratá-lo).

Não é para menos: Dodô foi magistral. Entrou para decidir o jogo. Na primeira bola que tocou, sofreu a falta que resultou no primeiro gol. Na segunda, puxou um contra-ataque onde saiu a virada. Na terceira, perdeu de marcar depois de ter roubado uma bola no meio de campo. A quarta... Ok, chega, chega. Agora só importa mesmo dizer que ele ainda fez mais duas boas jogadas e foi merecidamente premiado no fim da partida com um gol que levou o Maraca abaixo.

Enfim, vendo o jogo como estudioso do esporte, foi mais uma daquelas partidas memoráveis, que dá vontade de mandar gravar em fita VHS para mostrar para a criançada daqui a vinte anos. Já vendo com a paixão de torcedor que sou, só resta dormir com a dor de cabeça de quem tem certeza que estaria lá se não fosse um atacante gorduchito de um tal América do México.

Só que ruim mesmo vai ser agüentar o Renato Gaúcho dando entrevistas (de óculos escuros, claro) dizendo que é um dos melhores treinadores do Brasil. Ah, vá te catar.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Malandro-agulha

Tinha um garoto lá na rua onde eu cresci que adorava se dar bem em tudo. Bem, tá certo que todo mundo adora, mas ele era demais. Ele era capaz de fingir ser o melhor amigo do craque da rua só para ficar no time mais forte das peladas vespertinas. Para se ter uma idéia, quem jogava bulica contra ele não podia vacilar por um segundo que a bolinha sumia para jamais reaparecer. Anos depois ele contou que o seu kichute tinha um estratégico furo propositalmente feito na sola onde cabia apenas uma bolinha de gude, e nada além disso.

Falando assim dá a impressão de que esse meu amigo era o verdadeiro malandro, mas não. Devo alertar que ele não era um malandro qualquer. Tinha um grau de malandragem em tal nível que o diferenciava dos outros malandros. Sim, porque ser malandro demais às vezes atrapalha. Ele era malandro o suficiente para ser chamado apenas de esperto, e não de malandro completo. Desde pequeno ele tinha a sapiência de usar sua malandragem apenas nos momentos em que aquilo lhe favoreceria e, principalmente, onde a malandragem não tinha como ser descoberta. E mesmo que fosse, que não pudesse ser usada contra ele.

Como todo mundo, malandro ou não, meu amigo cresceu. E foi na adolescência que criou uma técnica de malandragem infalível: não contar nada para ninguém. E olha que quando eu falo ninguém, é ninguém ninguém mesmo. Ele não tinha confidente, não se abria com o pai e não se confessava com o padre. Tudo o que fazia, guardava para si. Pegava todas as menininhas, comprometidas ou não, e não saía por aí se gabando. Aos 15 já ganhava seu próprio dinheiro – lícito – e ninguém sabia como. Só descobriram que ele aprendera a tocar violão quando teve um concurso de talentos na escola onde ele, como todo bom malandro, fez de tudo para ganhar.

E assim os anos foram se passando. A galera crescendo e ele lá, cada vez mais querido por todos mas com um monte de interrogações acerca da sua vida. Ninguém sabia, por exemplo, o que ele estava fazendo quando sumia ao entardecer de toda segunda-feira – nem a sua mãe. Então, como não poderia deixar de ser, iniciaram-se as especulações: "fulano está se drogando", "está se prostituindo", "vi fulano comprando crack no pé do morro outro dia". Da noite para o dia resolveram que era preciso interná-lo numa clínica de reabilitação. Não restava mais dúvidas. Alguém que some sistematicamente sem que ninguém saiba para onde ele vai, só pode estar usando drogas.

O rapaz, claro, se revoltou. No dia em que os "doutores" da clínica foram buscá-lo, dava para ouvir seus gritos a pelo menos duas quadras de distância. Só que a birra durou pouco. Malandro que era, deixou-se levar manso como um leão sedado de morfina. Não devia nada a ninguém, não tinha matado nem cachorro a grito e, acima de tudo, não usava drogas. Ficaria na tal clínica só durante o tempo que precisariam para constatar que ele estava "limpo", fosse isso um dia ou um mês. Pegou alguns livros, uma trouxinha de roupa, seu violão e foi. Andou até o camburão sem precisar ser empurrado e, ao entrar, lançou um olhar à vila que misturava desapontamento e tristeza. Alguns ali nunca mais tornariam a vê-lo.

O resto da história é meio obscuro. Depois daquele dia, ninguém mais na vila tinha notícias comprovadas sobre seu paradeiro. Uma de suas namoradinhas, a Aninha da rua de baixo, foi até a clínica após uns dias para tentar descobrir o que havia acontecido. Voltou dizendo que os médicos o liberaram dois dias depois de o terem levado por não constatarem qualquer resquício de droga no seu sangue. Reza a lenda que ele aproveitou que tinha umas mudas de roupa na mochila e se mudou para o Rio de Janeiro. Ele, o malandro, e seus únicos confidentes: uma dúzia de livros e um violão.

Por que escrevi isso? Sei não, acho que ando vendo coisas. Alucinações, quem sabe. É que outro dia estava zapeando os canais da minha televisão – o que é muito raro porque odeio essa mídia burra – e tive a impressão de tê-lo visto. Sim, meu amigo, o malandro. Ele estava lá, firme e forte, talvez até bonito (não entendo da beleza masculina), sendo entrevistado por um apresentador qualquer. Não era o Gugu; meu amigo não estava querendo rever a família deixada para trás. Ele estava de fraque, sentado num piano, com uma foto de Viena ao fundo. Era a estrela da noite. Acabara de tocar 12 variações da Eroica, de Beethoven. Posso estar enganado, mas no fundo tenho certeza que era ele, o malandro, meu amigo internado por uso de drogas.

A única droga em que ele era viciado é a mesma que me tem tirado o sono: a música.