sexta-feira, 30 de março de 2007

Falta de Memória

Acordo e vejo tudo embaçado, o gosto horrível na boca. Nenhum pensamento relevante. Estou com frio, minhas costas doem, a garganta perece irritada. Que tipo de merda eu fiz na noite passada? Levanto e penso no porque de fazer isso comigo todo final de semana. É sempre a mesmo história, e que história imbecil.
Abro a cortina o sol insuportável invade o quarto, só não é tão insuportável quanto os gritos das crianças que brincam no estacionamento. Preciso acordar direito, o reflexo do espelho me mostra que a noite passada foi daquelas. Olhos vermelhos, cabelos desgrenhados (isso que tenho cabelo curto) e ainda com aquele gosto horrível na boca. Escovo os dentes como se isso fosse curar a ressaca num toque de mágica. Claro que não cura a ressaca, mas já estou com um hálito decente.
Tomo um banho gelado, fico algum tempo só deixando a água cair sobre a minha cabeça, numa tentativa de me sentir melhor. Deito no sofá, coloco uma música e começo a raciocinar de maneira coerente. Vou até a cozinha preparo um café. Tomo uma caneca cheia e sem açúcar. O telefone toca, alguém de quem eu não me lembro me pergunta se estou bem. Não sei o que dizer, só digo que estou bem, apenas um pouco cansado. Ela se despede sem me dizer o seu nome nem do onde me conhece.
Uma e meia toca a campainha, quando abro a porta um taxista me entrega a minha carteira. Confiro e percebo que não falta nada dentro da carteira, pago o valor da corrida e agradeço a gentileza. Quando vou me sentar, sinto uma vontade de vomitar, corre até o banheiro e já sabe né! Três gorfadas e me sentia melhor. Lavo o rosto coloco uma camiseta e saio.
Vou até um restaurante bem sem-vergonha, mas a comida é boa, a garçonete já me conhecia de vista, e eu nunca tinha reparado nela. Sorridente ela me pergunta como foi a festa, disse que não me lembrava. Ela olhou bem nos meus olhos e disse, "mas é claro que não lembra, não sei o que você queria provar tomando uma garrafa de tequila de uma vez", a garota do restaurante falou me recriminando.
Pergunto a ela, como é que ela sabe disso, ao mesmo tempo as lembranças vão voltando, era óbvio que a garota estava no mesmo lugar que eu. Ela contou que estava com as amigas mas que não era muito de sair. "Reconheci você, mas quando fui falar contigo já era tarde. Você estava no meio de garrafa de tequila que parecia uma mamadeira. Você deveria se cuidar mais" disse ainda me olhando nos olhos.
Mal consegui comer direito, estava me sentindo debilitado, só belisquei um pedaço de frango e um pouco de arroz branco. Quando ia saindo a garota disse que eu não precisava pagar nada, que eu tinha crédito com ela ainda. Não entendi direito, e fiz questão de pagar, mas ela insistiu. Então perguntei a ela porque tinha crédito com ela. "Você me ajudou e ainda me ofereceu carona no mesmo taxi que você. Por falar nisso o taxista devolveu sua carteira.? Ele foi até minha casa devolver, ai disse que você morava aqui em frente. Aproveitei e vim para o trabalho" contou a mocinha, que já estava sentada ao meu lado.
Chego em casa e desabo no sofá, do jeito que cai dormi, algum tempo depois a campainha toca novamente. Era a garota do restaurante, ela queria saber se eu estava bem. Disse para ela se sentar, conversamos um pouco. Já me sentia melhor, de repente ela se levanta vai até o meu quarto e debaixo da camisa que eu usei na noite anterior ela tira uma bolsa e diz; "sabia que tinha deixado aqui!"
Ela pegou a bolsa me deu um beijo e saiu.

Série NR - Cláudio e Cláudia

Tudo começou quando Suelen, nervosa, mandou que Cláudio dormisse na rua. Maneco, colega de trabalho e muito prestativo, ofereceu o quarto da sua sogra, vazio desde que ela fora estranhamente assassinada, para Cláudio.
Na manhã seguinte, durante o café, Cláudio e Cláudia se conheceram. Desde o começo ela se insinuou, mesmo com o marido por perto. Cláudio, agradecido, queria distância.
Mas ela insistia.
Dizia para o Maneco convidar Cláudio e Suelen para jantares, almoços, churrascos. Chegou ao ponto de ligar para Cláudio durante a tarde, mesmo sabendo que ele e Maneco sentavam-se lado a lado na firma. Depois de tanta insistência, Cláudio cedeu.
Combinaram de se encontrar, às 17h, num parque afastado do centro. Ele disse que ia jogar bola, ela, num chá de bebê.
Nem conversaram. Cláudia beijou Cláudio. Cláudio possuiu Cláudia. Enfim, os dois corpos viraram um só, ali mesmo, no parque.
Cláudio voltou pra casa desnorteado. Cláudia, satisfeita.

O Traído
Os dias seguintes foram de confusão para Cláudio. Via o amigo e a mulher com dor na consciência.
Além disso, não se encontrou mais com Cláudia. Ela já não ligava nem convidava para almoçar.
Suelen nada sabia e Maneco ainda era o mesmo amigo de antes. Mas eles eram traídos, Cláudio tinha pena.
Numa crise de remorso, chamou Maneco num canto:
- Tua mulher te trai. – Largou, indiscriminadamente.
Maneco, sem demonstrar interesse:
- Ora...
- Não ligas? Não queres saber quem foi?
- Não.
Inconformado:
- Mas e se foi um amigo teu? Não queres matar o desgraçado?
- Pouco me importa.- diz Maneco, friamente.
- Fui eu Maneco! Foi comigo que tua mulher te traiu!
- Não tem problema.
E, súbito, uma paulada corta o ar. Maneco agora jaz ao lado do máquina de fax.
Cláudio não pôde suportar tamanha indiferença.

Série NR - O Sarcasmo

Rogério sempre foi sarcástico. Desde criança, todas as suas respostas foram grosseiras e mentirosas. Logo que aprendeu a formar frases, teve sua mãe como vítima:
- Neném quer papinha? Ah guti-guti-guti... – daquele jeito que só mãe sabe fazer.
- Não. Quéio buchada de bode com muita pimenta.
 Quando conheceu Marina, uma pequena de modos e beleza invejáveis, estava usando uma camisa do São Paulo.
- Torces para o tricolor? – Perguntou, ingênua.
- Não.Esta é a última moda em Milão.
Ela, meio sádica, gostou daquilo, e começou a se insinuar. O problema é que Rogério, além de zombeteiro, tinha um orgulho que o fazia levar suas mentiras até o fim. Quando Marina disse "aceitas um sorvete?", ele largou, sem medir as conseqüências:
- Na verdade eu prefiro uma sopa. Gostas de canja?
E lá foram eles, sob um sol de 36ºC, na cantina da Jurema, pedir canja de galinha.
O fato é que passaram o dia inteiro juntos. Foram ao parque, ao cinema, à biblioteca. Marina o tempo todo agüentando respostas grosseiras – e adorando. Certa hora, Rogério encontrou uma vizinha:
- Conheces a rapariga? – de propósito, Marina provocou.
- Não. Eu costumo beijar e abraçar todo mundo que usa um Armani verde salto 12.
Lá pelas tantas, Rogério foi levar a moça em casa. Naquela última conversa, na escadaria do prédio, ela se ofereceu:
- Queres subir comigo? Podemos tomar um vinho e...
Ele interrompeu, e não mentiu, desta vez:
- Não!, você não faz meu tipo.

quarta-feira, 28 de março de 2007

A Cabeleira

Deodato Orleans de Silva e Bragança tinha uma cabeleira de dar inveja a qualquer sansão. Era algo comprido, brilhoso, bem cuidado. A maior da sua cidade e, com certeza, entre as TOP 10 do Brasil. Deodato gostava disso. Gostava e sabia como usar.
Na adolescência era um rapaz de comportamento medíocre. Não respeitava ninguém, tratava todos com rispidez e acerbo. Mas mesmo assim tinha tudo que queria. Usava seu cabelo para, de alguma forma, conquistar a todos e satisfazer seus anseios.
Teve muitos amigos e namoradas, todos, claro, interessados em seu lindo cabelo. Mas Deodato não ligava. Sabia que qualquer um que o virasse as costas poderia facilmente ser trocado por outro, bastava que balançasse a cabeleira. A usava sem economia, ostentando aos quatro cantos aquilo que, como poucos, possuía.
Certa vez, lá pelos seus vinte e tantos anos, Deodato estava muito bem instalado na vida pública, graças ao sábio uso de suas características capilares. De repente algumas notas brotaram na imprensa questionando a autenticidade daquela cabeleira. Instalou-se, afinal, no Congresso Nacional, uma CPI com o intuito de apurar todas essas denúncias.
A "CPI da Barbearia", como ficou conhecida, procurou qualquer tratamento químico na cabeça de Deodato. Chapinha, escova, bobis, mega-hair, alisamento japonês, dread-locks. Nada. Cogitaram até escova de chocolate, mas o cabelo do réu era mais limpo que carteira de brasileiro. "Isso tudo veio do meu pai", dizia.

A Revelação
Deodato ficou velho e velho, sabe como é, começa pensar na vida. Ele passava as tardes na varanda pensando no que tinha feito durante a sua. Pensado se valeu a pena te usado a cabeleira para conseguir o que queria, se valia a pena as tantas namoradas que teve, mesmo sabendo que era só interesse no cabelo. Numa dessas tarde chegou a conclusão: sim, valeu.
Ele aproveitou tanto a vida que isso já bastava. Foram tantas festas, tantas viagens, tantos romances televisionados. Deodato era um sucesso. E ainda colecionava uma porção de amigos, acreditava. Para provar isso resolveu dar mais uma festa, de arromba, talvez a última de sua vida.
E convidou todo mundo que um dia tinha passado pela sua agenda. Milhares de pessoas compareceram. Artistas, militares, políticos, esportistas, enfim, todos. Alguns jornais até botaram uma foto da festa na capa. Não havia mais dúvida: Deodato era mesmo um sucesso. Por ironia, caiu doente no dia seguinte.
Perto do fim, Deodato chamou a enfermeira para perguntar onde estavam suas visitas, seus amigos. Tinha recebido, até então, dois ou três filhos e um ex-funcionário, talvez seu único verdadeiro amigo durante toda a vida. Já Júlio, "o careca do lado", tinha ganhado até coroa de flores da comunidade onde morava.
Ao ouvir a conversa, Júlio interpelou: "Olha, amigo. Percebi que aproveitaste bem tua vida. Mas existe um velho ditado que te cabes direitinho agora: 'Se queres saber quantos amigos tens, dê uma festa. Se queres descobrir a qualidade deles, fiques doente'". Dito isto, morreu.
Deodato, enfim, entendeu: o cabelo não é tudo nessa vida.

terça-feira, 27 de março de 2007

Dire Straits

Eram cinco horas da tarde e Miltinho fazia a última entrega do dia. Cem quilos de farinha, coisa simples, corriqueira, só que do outro lado da cidade. Uma quinta-feira, véspera de feriado, calor e trânsito inesperadamente infernais: deveras um dia estressante.
Miltinho já havia discutido com o chefe por tê-lo colocado numa rota muito longa; com um motoqueiro, por quase levar seu retrovisor; e até com uma velhinha que custava a atravessar a rua. Ele já não via a hora daquele dia acabar.
Eis que surge um sinaleiro. Apenas mais um naquela rua aparentemente infinita. Miltinho pára e fica quieto, com cara de quem já não agüenta nem mais reclamar. Arruma o cabelo, enxuga o rosto e olha em volta. Nem acredita.
O destino, sempre ele, colocou a sua direita tinha uma loura, daquelas espetaculares, num Fiesta azul, cantarolando e batucando uma singela canção. Não se ouvia a música por a janela estar fechada – provavelmente por causa do ar condicionado, sortuda –, mas aquele batuque, um tum-tum-pá, tum-tum-pá na parte de baixo do volante, seguido de uma virada e dois tapinhas no console central, não deixava dúvidas: ela ouvia Dire Straits.
Mas, oh!, que maravilha. Uma loura quase escandinava, fabulosa, ali do lado, cantando Dire Straits, absorvida em seu momento. Miltinho estava apaixonado. De várias formas tentou chamar a atenção da moça. Gritou, buzinou, acenou, enfim, só faltou sair do carro e bater no vidro dela. Nada.
O sinaleiro abriu – agora era o "maldito sinal" – e Miltinho ficou pra trás. Ela arrancou primeiro e só deu tempo de ver o adesivo colado na traseira do Fiesta:  "Ciências Ocultas – FACCUL".

A Caçada
Não era muita coisa, mas já tinha uma pista. Estudava na FACCUL, as Faculdades Avançadas das Ciências Ocultas (um erro de ortografia permitiu o uso do trocadilho), no curso mais concorrido do Câmpus. Mas agora precisava ir até lá para encontrá-la. Mas o que poderia ser entregue num lugar como aquele? Decidiu mudar para o setor de entregas gerais.
Era o setor mais sinistro da empresa. Na primeira semana, Miltinho já tinha entregado desde aqueles cabos em espiral para telefones até fraldas geriátricas a macacos velhos. Quis o destino, sempre ele, que um dia um carregamento de galinhas pretas chegasse até o pátio da empresa. Para sem entregue na FACCUL, que ironia. Miltinho se ofereceu para fazer o serviço. Era sua chance.
Nesse dia todos se espantaram com o capricho de Miltinho. Botou uma camisa florida nas cores da empresa, passou brilhantina nos cabelos e até comprou um sapato novo com o Garcia, o baiano que trazia produtos importados do "exterior". Ia, afinal, encontrar-se com Maria – nome que inventou para sustentar a mentira de que já tinha conversado com a "menina do Fiesta".
No Câmpus da FACCUL, Miltinho não teve trabalho. Os alunos se estapeavam na porta da van atrás do melhor exemplar de galinha preta que poderiam conseguir. Era o que nosso herói precisava. Com isso ganhou tempo para ir atrás de seu amor.
Partiu em busca de Maria como um rato atrás de queijo. Os alunos estavam apressados naquele dia, mal dava tempo de olhar-lhes nos olhos. Mas eis que de repente o destino, sempre ele, colocou Miltinho e Maria frente a frente, num esbarrão. Na hora de pedir desculpas, ele balbuciou algo como "caixa de papelão". Estava nervoso.
"O que eu vou falar pra ela agora, cacilda?", pensou. Nervosamente, tentou uma conversa:
– Oi-você-não-é-a-loira-que-tem-um-fiesta-azul-e-escuta-dire- straits-muito-prazer-Miltinho. – Falou, de uma vez só.
Ela, claro, não entendeu nada, mas foi muito gentil:
– Calma moço. Não entendi nada. Porque você não toma esta água?
– Caixa de papelão!, quer dizer, obrigado.
De um gole só, Miltinho acabou com a garrafa da menina. Pelo menos se acalmou:
– Oi. Então, olha só. Eu te vi, quinta-feira, antes do feriado, na rua Germânia, na frente do Walter's .
– Ah sim. Eu sempre passo por lá. Mas você me viu e daí?
– Ah, então, você escutava, e cantava, e batucava, uma música. Eu adoro. Só penso em você, desde então. Pensei que, sei lá, se você, talvez, não queria sair, no Walter's mesmo, pode ser, comigo, e tomar um suco, ou uma cerveja. Sei lá.
– Hum, você é engraçado. Acho que pode ser uma boa. Que tal hoje à noite?
– Fechado.
– As oito?
– As oito.
E lá foi Miltinho, distraído, assobiando Dire Straits, de volta para a empresa.

O Namoro
As oito em ponto estava Miltinho esperando na frente do Walter's, brilhantina no cabelo, camisa de gola rulê, e sapato novo. Nem sinal de Maria – "oh, esqueci de perguntar o nome dela". 8h05 e nada. Ainda não se configurava atraso, mas Miltinho começou a se preocupar. "Será que ela não vem? Acho que fui enganado, afinal nem combinamos direito. Como fui burro! Ah, vida ingrata".
Quando o relógio da torre em frente marcava 8h16, Miltinho resolveu entrar no bar. Sozinho, cabisbaixo, nem se importou de pagar o dez reais de entrada. Eis que, quando entra, o destino, sempre ele, prega outra peça em Miltinho. Lá estava ela, linda e loura, sentada no balcão, tomando alguma coisa, e procurando as horas no celular. De súbito ele recupera o ânimo, levanta os ombros e vai lhe falar:
– Oi.
Ela, com a cara de quem achou água em pedra no meio do deserto, quase gritou:
– Oi!...
– ...Miltinho...
– ...Miltinho! Achei que você não vinha.
– Pois é. Eu estava te esperando ali na frente. Também achei que você não vinha.
– Puxa vida, que mal entendido. Senta, puxa uma cadeira. Quer uma gin-tônica? Prazer, Lúcia.
Lúcia. Ela agora tinha um nome. Um nome e um sorriso por tê-lo visto. Parecia nervosa e tomava uma gin-tônica.
– Não, obrigado. – respondeu secamente.
Sentou e pediu um conhaque. Tinha agora o controle da situação, afinal era ela quem estava nervosa. "Não se pode confiar em quem toma gin-tônica", pensava ele. Mas, enfim, ninguém é perfeito e ele cedeu o fato da gin-tônica. Engataram uma conversa por cerca de dez minutos. Afim de começar um novo assunto, Miltinho começou a falar do dia em que a viu no carro cantarolando:
– E você fazia tum-tum-pá, tum-tum-pá assim no volante. Depois tinha uma virada e dois tapinhas no console central. Era lindo!
– Ah sim, eu lembro! Mas não era uma virada, era uma pausa. Eu tenho mania de fazer aquele movimento assim quando tem uma pausa.
–  Uma pausa? Então você estava fazendo errado. Naquela hora é uma virada.
– Ora, claro que não. É uma pausa, eu tenho certeza.
– Como? Eu escuto Walk of Life desde criancinha. Tenho certeza que é uma virada.
–  Walk of Life? Do Dire Straits? Ui, eu odeio Dire Straits! Eu estava ouvindo Love Leads To Madness, do Nazareth.
Então Miltinho se levantou e jogou os quatro reais do conhaque sobre a mesa. Saiu sem falar nada. Toma gin-tônica vá lá. Mas não gostar de Dire Straits era demais.

segunda-feira, 19 de março de 2007

Série NR - O Conto do Vigário

Vigário era novo ali na vira. Surgira não se sabe de onde nem por que motivo. O fato é que em menos de um mês já era conhecido e querido por todos. Andava pela feira de sábado, entre as velhinhas, com a mesma desenvoltura que no bar do Johnson, todas as sextas-feiras. Durante a tarde, ainda, dava umas aulas de futebol para a criançada do bairro, de graça.
Estava sempre com sua bicicleta e uma mochila velha e surrada. A bicicleta às vezes ficava em casa, mas a mochila era inseparável. Jamais fora visto sem ela pendurada nas costas. Fosse na igreja, na mercearia ou na praça, Vigário não tirava aquele trapo das costas. Nos primeiros seis meses, ninguém ligou para essa característica. Mas eis que um dia o Tibúrcio, o padeiro portuga, perguntou por que motivo ele carregava aquilo o tempo todo.
Depois disso a vila virou um pardieiro. Vigário pichou muros, ruas, quebrou vidraças, assaltou velhinhas, molestou crianças, chutou cachorros, mijou nos carros. Enfim, tocou o puteiro! O bairro todo virou num grande caos. De repente Vigário sumiu, não se sabe para onde nem por que motivo.

sexta-feira, 16 de março de 2007

Série NR - 5ªB

Platão era o cara mais chato da escola. Não respeitava ninguém e só abusava do seu poder aquisitivo. Tinha alguns amigos, todos temporários. Sempre acontecia deles não agüentarem tanto descaso e soberba. Seu pai, Miguel de la Ried, era embaixador da Espanha no Brasil, e resolvia todo e qualquer problema do filho. Platão era um playboyzinho.
Estudava com Edilson, o Dilsinho, na 5ª série B do Colégio Padre Marcelo Turras. Não que fossem amigos, claro; apenas estavam na mesma turma. Dilsinho, ao contrário do outro, tinha muito respeito pelos colegas. Humilde e respeitados, não colecionava nenhum inimigo. Mas suas amizades também eram temporárias. Não que fosse chato, mas seus amigos, coitado, o esqueciam: ele passava o dia todo com a cara nos livros, estudando. Um perfeito CDF. Aquele típico estereotipo de futuro-dono-de-empresa.
Mas o futuro... Ah o futuro! Este sim é uma caixinha de surpresas. Dilsinho abriu uma firma promissora de comércio de pneus, com capital aberto. Começou lucrando horrores, criando filiais por todo o país e logo ficou conhecido no meio. Certo dia, na sua casa de Angra, apareceu morto, afinal. O assassino? Platão, agora famoso matador de aluguel. O mandante foi Zaôr, aquele ex-gordinho zoado da 5ªB.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Capítulo 2

Para variar eu e Clarissa entramos numa discussão para decidir o nosso próximo destino. Iowa ou Wisconsin era as opções, mas clara que como de praxe acabamos indo para o México. Acabamos parando em Monterrey, um lugarzinho tranqüilo e ao mesmo tempo perigoso. Dependendo quem estivesse descrevendo o lugar. Clarissa dizia que era tranqüilo, claro com todos aqueles assobios (ou assobios isso me irrita tanto), enquanto eu não mandaria nem a mãe de Clarisse pára lá por pena da sogra. Toda vez que lembro dela (a sogra) começo a coçar atrás da orelha, aquela mulher me dá arrepios.
Mas assim que chegamos em Monterrey, fomos em busca de um lugar para ficar. Tínhamos ainda 340 dólares, pois o chicano da caminhonete nos cobrou trinta pratas de cada um, como agradecimento pela carona. Nos hospedamos em um cortiço como aquele do seriado do Chaves (Chavo del ocho por essas bandas). Uma kitinete de uns dez metros quadrados, e com paredes finas. Graças a isso toda vez que o visinho recebia a visita de sua afilhada, é o que ele dizia pelo menos, eu não conseguia dormir. E quando não dormia pelo menos seis horas, eu tinha um... Como posso dizer, eu tinha... Uma necessidade intensa em ficar piscando durante o dia todo. Isso irritava muito Clarisse.
Minhas crises de “piscadelas” duravam horas, mas para alegria de Chancho (o visinho) a afilhada veio passar as férias em Monterrey. E graças aquelas duas semanas, a minha crise de piscadelas fazem parte da minha vida. Mas coisas boas aconteceram em Monterrey também. Consegui um trabalho como professor de inglês para os coiotes. Eles acreditavam que teriam mais chances de conseguir trabalho na América falando o idioma deles. Não que tenha sido um sucesso total, mas ao final da nossa estada em Monterrey conseguimos algum dinheiro. O problema é que a vida não era de graça e parte dessa grana foi para nos mantermos em Monterrey.
O México é um lugar bacana, as pessoas são carinhosas. Alguns me chamavam de Gio, outros de Guio, quase nunca pelo meu nome verdadeiro Guiomar, Giomar Beltrame. Mas a história do meu nome fica para outra hora. Porque agora tenho que pensar em um lugar bem longe daqui para viver com minha amada Clarisse. Acabamos de encontrar um caminhoneiro, Ozório, que vai para o sul do México, ele se dispôs a nos dar uma carona até lá. Clarisse ficou um pouco preocupada com o tipão do Ozório e pediu para que eu tentasse não dormir durante a viagem. Fiz o que ela me pediu e fora à volta crise de piscadelas ainda ganhei um cacoete novo. O de levantar como e estivesse levando um susto a cada princípio de cochilo.Entre cochilos, sustos, noites em hotéis de menos duas estrelas chegamos em Acapulco. Pelo menos a praia é boa.

terça-feira, 13 de março de 2007

Série NR - Chef de Cuisine

Dilberto adorava cozinhar. Todas as vezes que foi casado, doze ao todo, dizia ter "pegado o peixe pela boca". Dos diversos cursos de culinária que fez, um em cada Sesc da cidade, sempre era o primeiro da turma, um expert no uso de pimentas. Sua mãe dizia que era isso que enlouquecia as garotas.
Seus relacionamentos duravam no máximo dois anos. Sempre acabavam pelo mesmo motivo. Dilberto só gostava de garotas magrinhas, e na audiência do divórcio todas já pesavam mais de 90 kg. Dilberto cozinhava mesmo muito bem e odiava pessoas gordas. "Elas comem muito, não apreciam", dizia. Então separava-se.
Uma vez conheceu Verônica. Pele morena, estatura mediana, lábios carnudos e, principalmente, magérrima. Decidiu que seria ela sua próxima esposa. Uns dois jantares depois já estavam juntos, casados. Ao final do segundo ano, a mulher ainda ostentava aquele porte esguio de quando se conheceram. Dilberto se desesperou. No fundo, no fundo, gostava de se separar das "gordinhas". No aniversário de quatro anos de casado, Dilberto se matou na banheira da suíte.
Verônica tinha bulimia.

segunda-feira, 12 de março de 2007

Sexta, sábado e domingo

Não existem níveis seguros para o consumo destas substâncias. Ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado.

domingo, 11 de março de 2007

Série NR - Mulher de um Cara

Todos os dias as 7h57 ela aparecia dobrando a esquina em minha direção. Do ponto do ônibus eu a via, sempre de cabelo amarrado mostrando alguma letra oriental no pescoço. E que pescoço lindo.
Ela sabia que eu deixava de pegar o coletivo para ir junto com ela. Ficávamos naquele jogo de olhar, de sedução. Certo dia ela apareceu de mãos dadas com um cara. Aquilo me deixou a beira da depressão.
Dois dias depois, a malandra apareceu com outro rapaz. E assim foi, um cara diferente por semana. Até que numa manhã chuvosa de terça-feira oferecia ela uma carona no meu guarda-chuva. Gabi. Gabi foi como ela se apresentou. Fiquei confiante e a chamei para sair. Fiquei puto. Ela me disse que era casada e que o marido me conhecia.
Ela só saía com estranhos.

Série NR - O enteado

Pedro, um garoto de 14 anos, morava com o pai e sua madrasta em uma apertada casa no bairro mais boêmio da cidade. Matilde, a madrasta, sempre provocava o garoto: - Pedrinho, você já um homem! Deve fazer sucesso na escola. Isso desesperava Pedro, que ruborizava só com a presença da madrasta.César, o pai, não era uma pessoa das mais comunicativas, e esse era o traço paterno mais presente em Pedro. Todos os dias Matilde colocava a mesa um pouco antes dele chegar em casa. Quando Pedro, o Pedrinho da Matilde, chegava da aula, ela ia até a porta do quarto espiar o garoto trocando de roupa. Ele nem percebia. Certa vez César flagra sua esposa espiando o garoto. Com uma faca de cozinha tira a vida da voyeur.

sábado, 10 de março de 2007

Série NR - Casal 20

Falava-se que aquele casamento já não andava bem das pernas. "Estão na crise dos sete anos", diziam, e era sabido de toda a rua que ambos tinham seus respectivos amantes. Só que os dois juravam de pés juntos que ainda se amavam.
Para provar, todos os domingos saiam de mãos dadas pelos parques da cidade, comendo da mesma pipoca e desenhando coraçõezinhos nas árvores, bancos e postes. "Marinho e Dirce, para sempre", escreviam.
Certo dia, durante uma janta, resolveram conversar:
- Porque me traes? – disparou Dirce.
- Ora... Já faz tanto tempo! Você sempre soube, tua mãe sempre soube, seu irmão sempre soube. Porque vens me perguntar isso logo agora? Além do que você também me trai. – Respondeu Mário.
- Eu sei! Mas eu ainda estou com o Fábio da Jurema. Já você largou da minha prima para se atracar com aquela vaca da marcinha.
- Opa, opa! Olha lá como você fala da Marcinha. Ela é muito boa para mim. Deixe-a fora disso.
- Falo como eu quiser! Você só podia ficar com a Luana. Pensei que tínhamos um acordo.
- Acordo o catzo! E eu sempre odiei aquele Fábio. Só deixei porque achei que voltavas sempre feliz da casa dele.
- Já chega Marinho. Vamos parar por aqui.
E a noite, de fato, acabou ali, bem em cima da mesa, entre uma panela de lentilha e um prato de angu.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Série NR - Beatíssima

Carlinha era a moça mais bonita daquelas bandas. Seu rosto era meigo e seu andar leve como o de uma princesa. Todos os rapazes a cortejavam. Também pudera, além de linda tinha as melhores notas da escola. Beata como a mãe, ia todos os dias à igreja. Além do mais, seu pai oferecia um dote dos mais cobiçados da região.
Mas Carlinha não estava aberta a novos relacionamentos. Na flor da adolescência, com seus 17, 18 anos, foi obrigada a decidir o que faria da vida: ou se casava ou estudava para ser freira. Por influência das suas primas Marlúcia e Santinha, mais velhas, solteironas e feias como o diabo, decidiu-se pelo caminho religioso.
Dias depois foi encontrada morta no banheiro do seu quarto. Suicidou-se com o estilete que usava para abrir a embalagem do vibrador que acabara de comprar.