quinta-feira, 10 de maio de 2007

Pega ladrão

Eu sou a favor da redução da maioridade penal.
Agora, por favor, releia o parágrafo anterior. Releia, aprecie, deguste. Foi realmente duro conseguir escrever isso. Releia.
Não faz muito tempo ganhei o direito de ser preso. Sou um jovem rapaz, com meros 19 anos, cheio de idéias revolucionárias e nenhuma atitude. Fizeram-me decidir sobre o que penso da redução da maioridade penal. Ora, se é assim, sou a favor da redução da maioridade penal.
Eu, com essa idade toda, não consigo formar uma opinião. Preciso de alguém que me explique as coisas, que me convença do certo e do errado. Até pouco tempo atrás minha mãe fazia isso por mim, agora não. Tenho que ler os jornais, conversar com pessoas, ir à Boca Maldita e escutar seus velhos pensadores. Sou grande o bastante para dirigir, mas ainda não sei nada sobre a vida. O primeiro parágrafo. Leia, por obséquio.
Como todo mundo, tenho meus acessos de raiva. Fico irado quando, por exemplo, perco uma partida de futebol no vídeo game para um colega ou recebo ordens sádicas de meu supervisor de estágio. Nem que por alguns instantes, faço deles meus inimigos mortais. Quero esganá-los, botá-los na forca, dar-lhes tiros no meio do nariz. São processos instantâneos, que eu consigo controlar, que eu aprendi a controlar. Mas e se os faço? Se esgano meu superior ou atiro no pâncreas do meu colega que me venceu? Vou preso, afinal estou apto a isso. Tenho 19 anos e, pela lei, já entendo o sentido da vida. Posso ir preso.
Mas eu não entendo. A vida ainda é uma grande incógnita para mim. Eu seria preso considerado como adulto, ainda que sem as certezas que surgem em tal estágio da vida. Fui preparado, fiz o caminho certo. Cada coisa em seu tempo, cada tempo um aprendizado. Sou um caso de quem viveu sob todos os direitos assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Pois bem, mas esse é o meu caso.
Releia o primeiro parágrafo. Foi difícil.
Eu fui um filho pretendido. Minha mãe desejou que eu tivesse nascido. Me amamentou com amor e carinho, me levou para brincar nos parques e praças da cidade. Quando criança, fui para a escola e aprendi as palavrinhas mágicas. A tia me ensinou a rezar antes das refeições e formar fila para descer no escorregador. Tive uma vida de criança.
Na adolescência, fui ao colégio. Jogava futebol contra outros times de garotos, ia ao cinema com as garotas. Estudei química, física, biologia, ética, filosofia, religião. Tive uma vida de adolescente. Agora estou aqui. Com 19 anos e começando a viver a vida adulta.
Não esqueça do primeiro parágrafo.
Nem todo mundo teve essa vida. Nem todos têm a vida exatamente como prevê o estatuto da criança e do adolescente. Moro no Brasil. Não sei se moro muito bem ou muito mal, mas sei que as oportunidades não são para todos.
Imaginemos outra criança. Ela foi odiada desde o momento de sua concepção. Um filho de uma adolescente de 15 anos, estuprada por um mendigo enquanto voltava da escola para sua casa numa favela qualquer. A menina fez de tudo para que a criança não nascesse. Tomou remédio, tomou purgante, deu socos na própria barriga, quase morreu numa clínica clandestina tentando realizar um aborto. Mas nada deu certo: nasceu um menino, já cheio das marcas da vida, mesmo tendo vivido alguns minutos dela.
Ele foi odiado pela mãe. Ela quis jogá-lo no rio dentro de um saco plástico ou doá-lo para uma equipe de tráfico internacional de órgão. Cogitou até a hipótese de mandá-lo para um orfanato, mas desistiu quando lembrou que no futuro ele poderia procurá-la e exigir algum carinho. Enfim, o menino teve mesmo que viver e continuar no barraco. Ele e mais oito pessoas, num casebre de três cômodos, feito de placas de outdoor.
Nunca foi à escola. Do zero aos dois anos, passava o dia como símbolo de pobreza no colo da mãe enquanto ela trabalhava pedindo esmola no sinaleiro. Dos dois aos cinco, ele próprio o fazia, depois de dançar uns passos de hip-hop na faixa de pedestres. Aos cinco arrumou um emprego: aviãozinho do tráfico no morro. Levava a droga da boca ao asfalto, e ainda fazia a contabilidade. Aos oito, perdeu o emprego – o terceiro, já que foi “vapor” e “cargueiro”, depois de aviãozinho – porque juntou uns amigos para assaltar uma vendinha da região, o que desagradou o chefe.
Eu ainda estou no primeiro emprego, um estágio. Enfim, releia o primeiro parágrafo.
Aos doze anos, o menino já tinha matado, cheirado, roubado. Era sujeito homem. Tinha sua própria boca de fumo, que vendia só maconha, por enquanto. Nunca estudou, mas fazia a contabilidade, contratava funcionários, preparava uma logística de vendas e mantinha um recursos humanos. Aos 13, começou um guerra quando perdeu sua virgindade com a mulher do chefe do tráfico do morro vizinho. E venceu. Aos 13, o garoto já sabia o que queria.
O primeiro parágrafo. Leia.
Segundo a legislação brasileira, qualquer pessoa com menos de 18 anos não têm o desenvolvimento capaz de compreender exatamente a natureza da sua conduta, não estando, portanto, apta a ser condenada a uma pena de reclusão. Em casos graves, entretanto, este menor necessita de internação em estabelecimento adequado a formá-lo para a vida social. Ser “ressocializado”. O que eles não dizem é que isso só serve para as situações ditas ideais, onde criança é criança e adolescente é adolescente.
Eu cresci sendo preparado para a sociedade, o garoto não Quando era pra ser criança, eu fui criança. Quando era para ser pré-adolescente revoltado, eu fui pré-adolescente revoltado. Agora estou no caminho para a fase adulta, seguindo passo a passo todas as etapas. O outro personagem nasceu precisando ser adulto. Ele não foi preparado, pulou etapas.
Desde que veio ao mundo teve que trabalhar, passar fome, conseguir dinheiro para as contas da casa. Não pôde estudar, não pôde almoçar aos domingos na casa da avó, não pôde jogar futebol com os amigos. Não pôde sequer ter amigos. Ele sempre foi obrigado a ter convicção do que queria. Sabia que ninguém nunca iria decidir qualquer coisa por ele. Sabia que não poderia errar e depois pedir desculpas. Se errasse, estava morto. Ninguém nunca o ensinou a controlar seus acessos de fúria.
Se ele matar alguém, foi pensado. Ele já sabe o que quer. Tendo 14, 17 ou mesmo 19 anos, ele sabe o que quer. Ele teve sempre que saber o que quer. Ele é adulto.
Ser adulto não é um status adquirido, não tem a ver com a idade. Ser adulto é estado de espírito, é estado de consciência. Os adultos dizem que o são por terem certeza do que querem da sua vida, mesmo sabendo que isso é mentira. O garoto sabe o que quer da vida: ele quer é viver.
Ora, matando alguém, ele estará cometendo um crime, tendo 14 ou 19 anos. Deve ser preso. Preso para manter a ordem pública, não para prepará-lo para a ressocialização. Adultos já sabem viver em sociedade.
Agora leia novamente o primeiro parágrafo. Só que ao invés de "sou a favor da redução da maioridade penal", leia "sou a favor da maioridade penal, desde que só adultos sejam presos".

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