Sabe-se lá de onde, todos os sábados, Teobaldo aparecia, anunciando a plenos pulmões:
- Flhote! Olha o filhote de cão! Não tem raça nem pedigree, mas tem força pra domar um touro! Olha o filhote!
E assim seguia, até que a carroça se esvaziasse por inteiro.
De fato, os cãezinhos tinham uma força sobre-humana (ou sobre-canina, como preferir). Eram criados desde o primeiro dia de vida com vitamina de leite com pêra e muita aveia Quaker. Teobaldo os fazia brincar com singelos mordedores de chumbo, que era pra "mor de eles ganharem mais força nos dentes". Aprendiam a saltar sobre cercas e caçar patos, a montar guarda e render o adversário. Enfim, cresciam preparados para a guerra. Aos seis meses eram soldados formados, prontos para subirem na carroça e serem recrutados para a permanente batalha da cidade grande.
Um dia nasceu um filhote desgarrado, daqueles que nem força tinha para mamar nas tetas da mãe – quanto mais para carregar mordedores de chumbo. Nem com a série especial de treinamentos ele foi capaz de pular uma cerca. Uma vez o viram correndo atrás de um filhotinho de pato mas, suspeita-se, era só brincadeira de criança. Fazia tudo com muito esforço, por obrigação. Teobaldo, seu General, não tolerava corpo mole.
Porém, como nesse mundo capitalista não há trégua pra ninguém, aos seis meses, Simba, como passou a ser chamado, subia na carroça e partiu para a cidade. Teobaldo anunciava:
- Flhote! Olha o filhote de cão! Não tem raça nem pedigree, mas tem força pra domar um touro! Olha o filhote!
E assim seguia, até que a carroça se esvaziasse por inteiro.
Mas nesse dia, claro, um cachorro não foi vendido. Senão seria um dia como outro qualquer e daí não teríamos história. O cão, claro, Simba.
A Batalha
Teobaldo, negociante que era, não desistiu:
- Flhote! Olha o filhote de cão! Não tem raça nem pedigree, mas tem força pra domar um touro! Olha o filhote!
E assim seguiu, até um pouco mais longe do que o habitual, para ver se a carroça se esvaziava por inteiro.
Quando Teobaldo percebeu, já se passavam das onze e o vento gelado lhe cortava o rosto. Estava num lugar distante, com algumas casinhas aqui e acolá, escuro e deserto. Nenhuma pessoa a andar pelas ruas. Aquele caipira grilhão, vestido de couro de jacaré – por ele mesmo curtido – da cabeça aos pés, com as mãos marcadas pelo trabalho e o rosto rijo como pedra, estava com medo. "Medo de gente", pensava. Mas estava. Pela primeira vez Teobaldo teve medo. Pela primeira vez Teobaldo conversou com um dos seus animais:
- Escuta aqui, Simba. Eu treinei você para ser um guerreiro. Você tem que nos tirar daqui. Vamos! Pra casa!
E, como se aquele cachorro tivesse nascido justamente para amolecer o coração do caipira, Simba saltou heroicamente da carroça e tomou a dianteira do cavalo.
Andaram por mais de duas horas. Teobaldo sentia que estavam no caminho certo e foi tomado de orgulho daquele cão sem raça nem pedigree, mas com inteligência suficiente para voltar pra casa, esteja onde estiver. Subiram mais algumas ladeiras, cruzaram montes e vales, fizeram paradas em leitos de córregos, dividiram alguns biscoitos. Simba fazia um caminho diferente, mas era o certo para voltar para casa.
Certa altura, chegaram a um ponto movimentado da cidade, conhecido e iluminado. Alguns remanescentes da noite circulavam por ali. Guardas faziam suas rondas e feirantes começavam a montagem de suas barracas. Teobaldo não se conteve. Saltou da carroça e foi correndo abraçar Simba, seu cachorro salvador. O cão que os levou de volta à segurança. O animal que tinha vindo para salvar os corações rancorosos do mundo.
Quando abaixou para abraçar o cachorro, Teobaldo sentiu algo no pescoço. Foi como se tudo se apagasse de repente, e toda força acumulada por toda aquela vida intensa de batalhas se esvaísse num segundo O sangue que lhe escorria pelo peito anunciava o fim. Eras os treinados dentes de Simba, o cão guerreiro, o soldado que agora exigia sua liberdade, cravando a mandíbula no pescoço de seu General.
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