quinta-feira, 26 de abril de 2007

Laços de Família

Estavam na mesa, almoço de domingo:
- Pai, porque você come tanto?
Não respondeu. Aaron, com 14 anos, já tinha perguntado sobre tudo na vida. Sabia tudo sobre o que não é tão importante, sexo, dinheiro, amor. Insistiu:
- A gula não é pecado capital? – ele queria por que queria saber.
Zenon, o pai, não estava preparado para aquilo. Achou que demoraria uns anos para que o filho viesse lhe falar sobre um assunto de tamanha importância. Zenon julgava aquilo muito importante. Era a hora de falar sobre pecados, sobre a gula, sobre a ira. Era a hora de mostrar para o filho o verdadeiro sentido da vida. Pelo menos o sentido que ele, o pai, achava ser o certo. Mas não perdeu a pose:
- De noite conversamos, filho.
E seguiu com sua refeição.

De fato, á noite, estava lá Aaron, na biblioteca, esperando o pai. Lá era a "sala para assuntos importantes".
Logo chegou Zenon, glutão que só ele, com uma coxinha de frango numa mão e um pedaço de torta na outra. Ele não era aquilo que se chame de gordo, apenas encorpado, apesar de sua conhecia fama de comilão. "Apreciador do maior prazer da vida", como costumava dizer.
- Pois bem, Aaron. Eu não esperava ter que te dizer isso tão cedo. Confesso que nem estava preparado para tal pergunta. Mas vamos lá, o que quer saber?
- Eu já falei, pai. Porque o senhor come tanto?
- Bem, vejamos, por onde começar? – olhando para aquele suculento pedaço de frango – A vida, meu filho, a vida é feita de prazeres. Prazeres e pecados. Muitas vezes essas duas coisas se confundem.
O filho já estava impressionado. Nunca vira o pai falando tão sério, com tanta paixão sobre um assunto.
- Não dizem por aí que tudo o que é proibido é mais gostoso? Os pecados são proibidos, os pecados são gostosos. Quem não gosta de sair por aí e mostrar o carro novo que comprou? Isto é soberba. Quem não gosta de ter sua conta bancária lotada de dinheiro? Avareza. Quem não se nega a lavar a louça um dia? Como você mesmo diz, "coisa de irmão mais novo"? Isso, meu filho, isso é o orgulho.
- Mas, pai...
- Espera que eu não terminei. Veja: quem não se arruma todo pra ir num casamento? Vaidade. Quem não sente prazer em ver aquele valentão da escola se dando mal? Ira. E agora, vai dizer que não é bom ficar com duas garotas ao mesmo tempo? Luxúria, meu caro, luxúria. Pecados são os prazeres da vida.
- Pai. Eu só quero saber porque você come tanto assim.
- Eu vou chegar lá, calma.

Quando voltou da cozinha, Zenon trazia uma bandeja com diversos pratos diferentes. Uma tigela de estrogonofe, um prato de crepe, um tuppeware com arroz e feijão, uma banana caramelizada, um bife à cavalo, um empadão de camarão e uma fatia de torta de limão.
- Do que você mais gosta aqui, filho?
- Não sei. O empadão, talvez.
O pai empolgara-se.
- Mas e do que você PRECISA?
- Do arroz e feijão?
- Não, Aaron. De tudo. Você precisa de tudo. A gula é o único prazer insaciável. O único pecado remanescente.
O garoto estava se doutrinando:
- Como?
- Você não precisa comprar um carro novo todo dia para se satisfazer. O valentão não precisa tropeçar a cada três horas pra que você sinta o corpo ardendo de prazer. Ninguém precisa traia a mulher a vida toda para viver sorrindo. Mas comer sim. Comer é necessário, todo dia. Você precisa ter esse prazer para manter seu corpo funcionando. Você precisa cometer o pecado da gula pelo menos três vezes por dia para ter uma vida saudável. Comer, meu filho, é o maior prazer da vida. O maior porque é infinito.
Aaron agora olhava com orgulho para o pai. Aquele sábio comilão.
- Vai, coma. Essa bandeja é toda sua. E você só sai daqui quando estiverem todos os pratos limpos.
Beijou a testa do filho. Aaron fora iniciado. Estava garantida a doutrina da família Silva por no mínimo mais uma geração.

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