A festa corria solta. Papo vai, papo vem; uma cachacinha aqui, um torresminho ali. Na sanfona, o Zé Gaiteiro. Thomas da Judite, que assim era chamado porque até ficar viúvo sua mulher mandava e desmandava em casa, acompanhava na viola. Tinha cerveja e vinho pra mais de metro, e não havia um nêgo que fosse que não estivesse completamente bêbado.
Lá pelas quatro, quase todo mundo já tinha voltado para casa. Restavam ainda alguns familiares do Coronel Fabrício, dono da casa, e o pessoal que morava mais perto, nas redondezas. Destes, o caipira Cachoeira era o mais animado: debaixo daquele seu velho chapéu de palha, cantava todas as modas com uma paixão tremenda. Usava uma bota assim, assim, de um couro curtido por ele mesmo, que mais parecia um saco onde botar os pés. Estava pra lá de Bagdá – e não largava a garrafa.
Quando o sol começava a salpicar os primeiros raios sobre a velha estrebaria, os bocejos tomaram conta do lugar. A essa hora, Bento já estava contando os casos mais escabrosos da região, mas agora, sem o friozinho da última hora da madrugada, já não botavam mais medo em ninguém.
Então veio aquela hora das despedidas e cumprimentos finais. Coronel Fabrício foi felicitado um sem-fim de vezes pelo caboclo que lhe servia de peão. "Nunca fui a um bailão assim, Coronel", dizia. E Cachoeira estava lá, recebendo inclusive alguns efusivos abraços por sua animação.
Na hora de se despedir do dono da festa, Cachoeira foi categórico: "Capitão, eu nunca tinha ido a uma festa assim. Todo mundo estava muito feliz e não faltou comida – nem bebida. Precisamos repetir um dia, certo?" Coronel Fabrício se limitou apenas a um aceno de cabeça. Estava cansado. O caipira entendeu o recado e partiu para casa, com uma garrafa de Vila Verde numa mão e o chapéu de palha na outra.
No caminho de sua choupana, ia recapitulando momentos da festa: a mulher do Lacerda, que chegou deslumbrante num vestido vermelho; o padre Lino, que se surpreendeu com o tanto de "sangue de cristo" que Cachoeira conseguia beber de uma só vez; o fazendeiro Mario Roque, que chegou de trator e fez a alegria da criançada; o Coronel Zelão, que fizera um escarcéu quando deu conta do sumiço do filho.
Já em casa, Cachoeira jogou o chapéu em algum canto, guardou a garrafa de cachaça no armário, tirou as "botas" e ficou só de ceroulas. Com a cabeça no travesseiro, já não pensava mais em nada. Acordaria cedo no dia seguinte para subir até a cidade se encontrar com Sinhá Armênia – ela iria cozer-lhe mais alguns paletós. De repente, pensou: "Onde raios foi parar Sarita? Para onde foi minha filha Sarita?"
Abriu os olhos, estarrecido. Ficou por alguns minutos admirando o teto e pensando na filha Sarita. Ela fora com ele para a festa, e há muito já não se viam. Lembrou-se de tê-la visto pela última vez antes do Zé Gaiteiro puxar a boa e velha Tristeza do Jeca. Depois disso, sumiu; como sumira o filho do Coronel Zelão.
Cachoeira tentava se lembrar se Coronel Zelão havia achado o filho. Devia ter achado, pensava, senão a festa acabaria ali mesmo. Nenhuma festa poderia continuar com um Coronel tendo seu filho perdido. Mas onde estaria Sarita? Ela já não era mais nenhuma criança, tinha corpo. Seu seio já era bem grande, aliás. Ficou preocupado.
Resolveu procurar pela casa. Ela poderia ter voltado antes, porque não? Já era bem grandinha e sabia o caminho de casa. Mas e se alguém a encontrasse no caminho e...? Preferiu nem pensar. Foi até o quarto da menina e olhou para a cama. O lençol de vime estava intacto, plano como uma chapa, e o travesseiro denunciava que ninguém deitava ali havia horas. Foi, então, até a cozinha – ela poderia ter ido buscar um copo d'água e cedido ao sono ali mesmo, na rede. Nada.
Sarita estava definitivamente sumida. Cachoeira se penitenciava mentalmente por ser um péssimo pai. Era a quinta vez que se perdia da filha no ano, recapitulava. Mas dessa vez era mais sério, dessa vez era para sempre (ele estava bêbado). Vestiu novamente a calça decidido a dormir só quando encontrasse de novo a filha.
Saiu de casa cambaleando. Mais tonto pela situação, agora, do que pelos litros de cachaça que havia tomado – ou não. Na porta, ainda chutou o gato da vizinha que vivia atazanando Morgana, sua gata de estimação. O bicho quase avançou em Cachoeira, mas até o gato percebeu que a batalha não valeria a pena.
O caipira quis voltar para a casa do Coronel Fabrício. Queria perguntar se alguém na casa sabia de Sarita. Ficou com medo, afinal o Coronal havia praticamente expulsado-o de lá. Decidiu, então, ir até a delegacia, falar com o subdelegado Matías, que era o encarregado da região. Pediria reforços da capital e o escambau, tudo para procurar Sarita.
Ao cabo de dois minutos, já havia desistido de todas as idéias e deitado novamente, só de ceroulas, na cama. Tudo era muito longe, especialmente àquela hora. A delegacia ficava a dois quartos de milha, um mundão para quem está completamente bêbado. Ia dormir, e só no dia seguinte procuraria a filha.
Sarita chegou à casa do pai dois dias depois. Viera da capital, onde estuda agronomia e mora com o noivo Rodrigues. Fora para lá atendendo o chamado da vizinha Joana, a dona do gato que atazana Morgana. Fora ela quem preparara o velório do velho Cachoeira. Ele morreu bêbado, dormindo, afogado com a própria saliva. Provavelmente pensava que a filha estava mesmo perdida.
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