quinta-feira, 28 de junho de 2007

A magia da literatura

Devo contar que tenho uma ligeira queda por literatura. E que se lixem as convenções: literatura é literatura, não importa o livro. Tendo letras que formam palavras que formam frases que formam idéias, é literatura. Leio o que jogam na minha frente, desde um sorridente livro de auto-ajuda até uma pesadíssima filosofia em alemão arcaico.
Leio, inclusive, romances policiais baratos, vendidos em bancas de jornal. Daqueles em que há um assassinato absurdo e misterioso por volta da página 10, uma torrencial cena de sexo entre o mocinho e a garota sexy (que, na verdade, é namorada do bandido e só sai com o mocinho para atrapalhar as investigações) na página 90 e, afinal, a solução – incrível – do crime nas últimas oito páginas.
A última folha é reservada para contar a merecida viagem do agente secreto para uma praia paradisíaca na América Central, onde ele recebe, bebendo um dry-martini (" stirred, not shaken"), a correspondência para a missão seguinte – que será tratada, claro, no próximo livro do autor.
As fórmulas são sempre as mesmas, só mudam o tipo dos crimes, os nomes dos personagens e dos países – que costumam variar entre os do leste europeu e do oriente médio – e a cor do cabelo da garota sedutora. Mas, não sei por quê, essas histórias são interessantes. Talvez porque contam exatamente aquilo que as pessoas querem ler, e de forma tão simples que não é nem preciso pensar. Elas divertem quem precisa de diversão.
Acho que todos os que lêem estes romances de 5ª categoria esperam um dia solucionar um crime, tal como fazem seus heróis dos livros. Analisar mensagens cifradas, impressões digitais, pegadas, sinais das estrelas, marca do charuto. Seria a glória para o caboclo. Ele cogita, até, em abrir um escritório, no 13º andar de um antigo prédio comercial do centro da cidade (daqueles bem sujos e mal freqüentados), com seu o nome na porta .Depois anunciaria no jornal "Detetive particular. Soluciono crimes. Discrição total. Fone 555-5555". Falo por mim.
Cada vez que termino um livros desses, fico pensando nisso: eu, usando uma calça xadrez de lã marrom, suspensórios e chapéu de boiadeiro, sentado com as pernas cruzadas sobre a mesa abarrotada de papéis inúteis e livros sujos; na ante-sala, uma secretária inocente e míope, vestida de macacão roxo, faz as unhas enquanto espera as ligações; no imenso armário de arquivos, transbordam falsos casos solucionados por mim, para dar a impressão de eficiência; na parede ao fundo, fotos minhas com a mão no queixo olhando os contornos que os policiais fazem em torno de onde caíra o cadáver; segurando a lupa, mando o cliente esperar por um instante enquanto analiso um velho jornal a procura de provas; por fim, meu charuto empestando todo o gabinete com sua fumaça densa de fumo barato (eu, com certeza, deixaria as janelas fechadas. Só para dar o clima).
Pensar, imaginar, sonhar. Isso é a mágica da literatura.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Escrete canarinho

É execrável o que estão fazendo com o futebol brasileiro. Jogador de futebol no Brasil virou commodity, produto de exportação. Estão roubando a identidade nacional!
E não é de hoje. Eu, por exemplo, sou de uma geração que vibra quando vê um atacante do seu time marcando pela seleção. Foi-se o tempo que times abarrotados de craques como Flamengo ou Santos eram a base do escrete canarinho (eu sempre quis escrever "escrete canarinho" – este é o motivo desta crônica).
A tendência é que em poucos anos o torcedor brasileiro perca o apego pela seleção. Ninguém mais vai conhecer os jogadores que os representam perante o mundo! Logo a seleção... Esse caso raro de paixão unânime, um dos poucos divertimentos do nosso povo tão sofrido.
E isso já vêm acontecendo, vide Afonso ou Daniel Alves. Deste ainda é (pouco) memorável sua passagem como revelação do Bahia, há uns quatro anos, mas de Afonso nem o mais fanático torcedor do Atlético-MG talvez se lembre. De lá ele saiu com 17 anos para jogar na Suécia. E da Suécia para o mundo: hoje está no expressivo Heerenveen, da Holanda.
Sem medo de represálias, culpo Falcão e Evaristo de Macedo por isso que acontece. Foram eles pioneiros na moda de deixar o Brasil para brilhar em outros países. Porque Falcão preferiu virar o "Rei de Roma" ao invés de ser o "Príncipe dos Pampas"? É muita ambição, muito egoísmo. Jogador deveria pensar menos em si mesmo e mais no povo que ele representa. Uma pessoa, a partir do momento que se torna referência na vida de alguém, deixa de ser apenas um indivíduo para virar uma representação da sociedade.
Muito mais nobre, mas nem todos pensam assim.
Imagine a seleção atual com seus jogadores atuando ainda em território nacional: Hélton pegando todas no Vasco da Gama; Juan salvando a zaga do Mengão, com Gilberto correndo pela lateral esquerda; Alex, Elano, Robinho e Diego ainda brilhando no Santos; Gilberto Silva – e, vá lá, Afonso – dando um jeito no Galo-mais-lindo-do-mundo. Enfim, haveria identidade. O povo ia torcer para o Brasil não pelo orgulho de ter estrelas cobiçadas no mundo todo na equipe. O povo ia torcer pelos seus jogadores, pelos jogadores do seu time. Ia ser o momento em que todos iam esquecer as intrigas para se unir ante uma causa única.
Esse seria o verdadeiro propósito de uma seleção, não?
Não, não. Acho que não. Eu que sou um grande sonhador: faz quase dez anos que o Brasil não joga no Maracanã (que, na minha humilde opinião, deveria ser tombado como patrimônio histórico da humanidade, uma das sete maravilhas do mundo).
Essa bola ainda vai rolar; este texto continua em breve.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Era só empurrar para dentro

E ai cara, beleza? Você viu o que aconteceu, viu o que eu fiz? Ou melhor
você viu o que eu deixei de fazer? Francamente às vezes penso que sou um cara descolado mas sei lá, na hora sou um tremendo cagalhão mesmo. Odeio ficar ensaiando para chegar na hora e não fazer nada. Ela estava lá pedindo por carinho, pedindo atenção, querendo alguém que a realizasse.
Antes daquele momento eu tinha pensado em tudo, em tudo mesmo. Pensei em como faria, como tocaria nela, pensei em até onde queria que ela fosse, pensei nos movimentos dela, nas curvas que faria enfim pensei em tudo.
Tinha tudo calculado, milimetricamente na minha cabeça. Juro que podia ver aquilo acontecendo.
O excesso de confiança foi decisivo, como pode? Na hora não me passou pela cabeça que não conseguiria, já estive várias vezes de frente com situações iguais e até mais complicados e obtive êxito em todas. É o famoso 'isso nunca me aconteceu antes', que é motivo de piada e revolta
para muitos. Essa vai ser difícil esquecer, isso vai sempre surgir de repente na minha mente.
Isso me afetou mesmo, olha só para mim. Falando com o espelho! Acho que preciso de tratamento, não isso não. Não devo ser o único a passar por isso, com certeza outros que são até melhores que eu já falharam também.
Talvez isso acontecera com todos, talvez todo mundo tenha que passar por isso para dar valor na próxima tentativa. Sei lá, mas prometo que na próxima vez que sobrar um bola de frente para o gol, ainda mais no final do jogo, vou meter o pé de qualquer jeito.
Prometo para mim mesmo nunca mais sequer pensar em enfeitar muito.

Fim

As cidades e os mortos


(de Italo Calvino, em Cidades Invisíveis)

Em Melânia, todas as vezes que se vai à praça, encontra-se um pedaço de diálogo: o soldado jactancioso e o parasita, ao saírem de uma porta, encontram o jovem esbanjador e a meretriz; ou, então, o pai avarento, da solteira, dá as últimas recomendações à filha amorosa e é interrompido pelo servo idiota que vai entregar um bilhete à alcoviteira. Anos depois, retorna-se a Melânia e reencontra-se a continuação do mesmo diálogo; nesse ínterim, morreram o parasita, a alcoviteira, o pai avarento; mas o soldado jactancioso, a filha amorosa e o servo idiota assumiram seus lugares, substituídos, por sua vez, pelo hipócrita, pela confidente, pelo astrólogo.
A população de Melânia se renova: os dialogadores morrem um após o outro, entretanto nascem aqueles que assumirão seus lugares no diálogo, uns num papel, uns em outro. Quando alguém muda de papel ou abandona a praça para sempre ou entra nela pela primeira vez, verificam-se mudanças em cadeia, até que todos os papéis sejam novamente distribuídos; mas enquanto isso ao velho irado continua a retorquir a camareira espirituosa, o usuário não pára de perseguir o jovem deserdado, a nutriz de consolar a enteada, apesar de que nenhum deles conserva os olhos e a voz da cena precedente.
Às vezes acontece de um único dialogador manter simultaneamente dois ou mais papéis: tirano, benfeitor, mensageiro, ou de um papel ser duplicado, multiplicado, atribuído a cem, a mil habitantes de Melânia: três mil para o papel de hipócrita, trinta mil para o de embusteiro, cem mil filhos de reis desventurados que aguardam o devido reconhecimento.
Com o passar do tempo, os papéis não são mais exatamente os mesmos de antes; sem dúvida a ação que estes levam adiante por meio de intrigas e reviravoltas conduz a algum tipo de desfecho final, que continua a se aproximar mesmo quando a intriga parece complicar-se cada vez mais e os obstáculos parecem aumentar. Quem comparece à praça em momentos consecutivos nota que o diálogo muda de ato em ato, ainda que a vida dos habitantes de Melânia seja breve demais para que possam percebê-lo.

terça-feira, 19 de junho de 2007

O Ritual

Aquele domingo era dia de FLA-FLU de decisão. Como em todas as outras, a preparação começou bem cedo para Donato: logo às 8h, caminhou no parque usando um novíssimo agasalho de treino; às 10h, correu ao açougue para comprar a carne do churrasco, vestindo uma relíquia do mundial de 81; ao meio-dia, chegaram seis ou sete companheiros para o que chamavam de "pré-jogo". Nessa hora assavam a carne, bebiam cerveja e, principalmente, discutiam as táticas.
Donato tinha o quê de líder da turma. Era dele a maior coleção de camisas, os mais diferentes objetos rubro-negros, a maior quantidade – e qualidade – de ingressos de jogos (ele foi ao mundial), a melhor TV e uma foto com Zico, que ocupava 3/4 da parede da sala. As reuniões pré-jogo invariavelmente eram em sua casa. Daquela vez, fizera questão de distribuir faixas aos amigos com os dizeres "Flamengo: Campeão Carioca de 2008".
Às 13h já estavam no "campo": formavam uma roda em torno do cooler para discutir as questões táticas.
- Renato tem que ser ponta! Como aqueles de antigamente – disse o mais velho da turma.
- Que nada! O Renato rende mais como volante... – retrucou o filho do Moraes, de apenas 17 anos – Aquele garoto, como é que é o nome dele mesmo?
- O Kayke. – responde o pai.
- Esse mesmo! Ele sim tem que ser ponta. Nada a ver ele de atacante.
E ficavam nessa discussão, durante uma ou duas horas. Perto das 15h, D. Noêmia levou os petiscos para a rapaziada e anunciou:
- Três horas, pessoal. Falta meia hora.
Os ânimos se atiçaram, a discussão esquentou, as apostas aumentaram. E dá-lhe amendoim com cerveja.
Às 15h30 a movimentação foi geral. Era a hora da preparação. Donato fechava as cortinas, outro limpava o sofá e o Moraes ligou a TV.
- Limpa essa mesa, Noêmia. – ordenou Donato. Ela fez sem reclamar, pois sabia que nessas horas o marido fiava agitado.
Com a mesa limpa, Donato se levantou e declamou, em tom profético:
- Bem, pessoal, foi um prazer inenarrável tê-los hoje aqui. Uma boa sorte para o nosso Mengão e nos encontramos no "pós-jogo".
Assim saíram todos, cada um para sua casa. Donato só assistia aos jogos sozinhos.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Amigo é para essas coisas

Ferrado e sem grana, Fred estava em uma sinuca de bico, num beco sem
saída, numa encruzilhada ou alugava uma roupa descolada para ir ao
baile, em espanhol El Baile!, que aconteceria no sábado ou pagava a
conta de luz. Parece uma escolha óbvia que ele deveria pagar a conta de
luz, mas no baile, em espanhol El Baile, estaria a Ritinha. Ela era a
garota mais linda de toda escola, o que tem uma coisa com outra? Sim
claro, tem que a ruivinha do cabelo curto (Ritinha) tinha dado um mole
danado para Fred, praticamente convidando-o para o baile, em espanhol El
Baile.
Aquela foi a sexta feira mais indecisa que Fred já viveu, para ajudar
ele tinha um trabalho complicadíssimo de mecânica dos fluídos para
entregar na segunda. Não bastasse o trabalho de mecânica dos fluidos,
tinha jogo do Mengão no domingo. Decisão da Taça Guanabara contra o
Vasco. Vendo por esse ângulo ele poderia muito bem pagar a conta de luz,
fazer o trabalho e assistir o Mengão aniquilar o bacalhau no domingo.
Sexta feira, hora do almoço, Fred está aflito na fila do banco para
pagar a conta de luz. Passou a manhã toda pensando no que fazer e
decidiu que não iria ao baile, em espanhol El Baile, e nem assistiria a
decisão da Taça Guanabara. Prometeu para ele mesmo que já que não iria
com a Ritinha ao baile, em espanhol El Baile, também não assistiria ao
jogo e ficaria fazendo o trabalho, já que mecânica dos fluídos não é uma
coisa fácil de se fazer.
Porém com a vida, não só para Josef Climber, é uma caixinha de surpresas
quase na vez de Fred ser atendido homens armados entram na agência e dão
voz de assalto.
-Todo mundo mãos ao alto, é um assalto!- foi o grito que rompeu a cara
de silêncio de todos que estavam no banco naquele momento. Fred nem
pensou duas vezes e levantou as mãos como todos os clientes e
funcionários do banco faziam, segurando nas mãos a conta e o dinheiro.
Enquanto um dos bandidos gritava as ordens para os demais assaltantes,
rendia o segurança que nada pode fazer. Um dos bandidos vai recolhendo o
dinheiro dos caixas e outro o dinheiro dos clientes, e claro lá se foi a
grana da conta de luz.
Revoltado Fred pensa em argumentar com o líder dos assaltantes e...
- Ei Sr. Ladrão, me da um minutinho por favor.
- O que foi?
- Samuca!!!
- Fred! E ai meu irmão, quanto tempo?
- O Samuca alivia ai vai.
- Po cara, sabe como é né. Também queria estudar engenharia, mas não é
pra qualquer um!
E o assalto segue, com os amigos conversando, até que os comparsas do
Samuca terminaram de recolher o dinheiro todo, dos clientes e dos
caixas. Antes de sair o amigo-bandido olha para a conta de luz na mão de
Fred e devolve a grana dele. Agradecido mas não satisfeito ele chama
Samuca para uma última prosa.
- O Samucão velho de guerra, posso te perguntar uma coisa?
- Claro que sim, pelos velhos tempos.
- Por acaso você não tem uma grana para me emprestar ai?

Fim

sexta-feira, 15 de junho de 2007

A Mais bonita do Brasil

Desde que a vi, pensei que ela era mulher "Mais bonita do Brasil" e
realmente era, isso mesmo era. Tinha um olhar hipnotizante, ela não
andava parecia que flutuava, todos os dias exatamente às oito e seis da
manhã ela entrava no coletivo com seu ar de deusa. Claro que não só eu,
mas todo mundo olhava. Velhos, homens, crianças, mulheres e garotas. Mas
isso nunca foi problema, sempre soube que eu não era o único a admirar
essa mulher.
Como todo mundo sabe, ninguém é perfeito. E não me iludi achando que a
"Mais bonita do Brasil" fosse perfeita, apesar de todo seu charme, garbo
e elegância passei a procurar o seu defeito. Todo mundo tem um, não
adianta tentar se enganar porque sempre tem alguma coisa, qualquer coisa
que valide essa máxima. Numa dessas manhãs em que eu me deslumbrava com
a presença da "Mais bonita do Brasil", ela carregava um livro daqueles
grandes. Achei que fosse o Senhor dos Anéis volume único, ou Crônicas de
Narnia sei lá, mas não. Ela carregava um livro de administração,
Administração Marketing blábláblá...
Na hora pensei: Pronto esse é o defeito dela, deve ser meio estressada
por ler essas coisas, trabalhar com isso deve ser muito cansativo.
Fiquei todo alegrão por ter descoberto um defeito na "Mais bonita do
Brasil". Porém depois de mais dois ou três desses nossos encontros, ela
não apareceu mais com aquele livro e isso me fez pensar que talvez não
fosse dela, ou para ela, aquele livro. Com a pulga atrás da orelha
passei a não considerar mais o defeito, como um defeito. Pode ser que
ela estivesse levando o livro para alguém.
Mas hoje foi diferente, depois de me sentir um pouco frustado por não
saber nenhum defeito da "Mais bonita do Brasil", finalmente pude ter
certeza de um defeito dela. Sim, depois de tempos consegui. É como diz o
ditado: Quem procura acha. E de fato achei.
Ela tem o pé grande e feio.

Fim

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Soco na Bola

O futebol por si só já é cheio de peculiaridades: o gol da rodada, o drible desconcertante, o impedimento mal marcado, a briga entre torcedores do mesmo time, o frango do goleirão. Mas tem uma coisa que é sempre única, especial: a comemoração.
Você pode marcar e sair imitando aviãozinho (a mais comum), mandar beijos pra torcida, chutar a bandeirinha de escanteio, beijar a aliança, falar com a câmera. Enfim, apenas quem faz gol entende o quão importante é a comemoração – e que é só na hora em que a bola entra que se consegue pensar no que fazer. Mas nada pode ser mais vergonhoso, degradante, ridículo que o velho "soquinho no ar".
"Mas espera aí", alguns de vocês devem estar pensando, "como assim o 'soquinho no ar' é ridículo? É a comemoração do rei Pelé!". Pois é. E é justamente por isso que ela se torna totalmente ridícula para nós, pobres mortais.
Pelé, Rei do Futebol, Edson Arantes do Nascimento. Tudo isso é sinônimo de "melhores momentos". Ele é aquele cara que, dos mais de 1.200 gols marcados, pelo menos uns 900 são dignos de replay. Ele é aquele cara que, sozinho, ganhou uma Copa do Mundo. Aos 17 anos. Não é à toa que só os argentinos não admitem que ele foi o melhor da história.
Além disso, Pelé tem um detalhe a mais que joga a seu favor. Pode parecer algo simples, mas tenho certeza que é isso que faz toda a diferença. Veja bem: em todas as fotos em que Pelé aparece dando seu "soquinho no ar" – e eu disse TODAS – a câmera o pega de baixo para cima, todo imponente no ápice do pulo. Ou seja, aparecem cem mil cabeças de torcedores no fundo, 4 mil jornalistas fotografando ao mesmo tempo e Pelé, com toda a envergadura que Deus lhe deu, a quase dois metros do chão, com a cara esfuziante de alegria e satisfação.
Coisa que você, caro leitor magrelo que insiste em jogar no ataque, nunca vai conseguir. Nunca. Nem com montagem de Photoshop.
Pelé era tão bom, mas tão bom, que qualquer comemoração que ele fizesse ia ser maravilhosa. "Pelé recebe lançamento no comando. Dá um chapéu no marcador... Impressionante! E outro! E mais outro! Foram três chapéus, minha gente... Eu vi! Tocou na saída do goleiro... Por baixo das canetas! É gooool de Pelé. Gol do Brasil! E olha a comemoração, Falcão. Pelé está coçando a nádega esquerda. Que bonito! Que alegria! Que beleza!"

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Amor à passarinho

Dá para se explicar o amor com dois pauzinhos, uma corda e uma caixa de papelão. Bem, não diria explicar, mas pelo menos ilustrar. E olha que isso já é grande coisa em se tratando do amor. Milhares de filósofos, dramaturgos, escritores, mendigos e afins já tentaram defini-lo, mas nunca houve uma explicação tão poética quanto a de um antigo sábio, que, no caso, é este que vos escreve. A da arapuca.
Nossa vida conjugal é como uma grande caçada a passarinhos. Não que se queira juntar um grande número de espécimes ou uma infinita quantidade de exemplares – apesar de muitos "caçadores" só buscarem isso a vida toda –, mas porque temos que experimentar. Temos que tentar até que se ache o pássaro único, a espécie ainda não catalogada, o "passarinho verde".
Começamos lá pelos doze anos, com o primeiro amor, digo, estilingue. Este pode ser um quero-quero ou um "ubu-de-bico-largo", não importa: quando filhotes, são todos iguais. Pode-se até tentar, mas é só nos cinemas que esse primeiro exemplar da coleção vira o supra-sumo da coletânea, a "moedinha nº1". Normalmente ele servirá como parâmetro nas próximas buscas. Se o primeiro amor deu certo – "se a arapuca serviu" – todos os outros virão com facilidade, afinal, já se sabe como fazer. Se não deu, paciência: a auto-estima dificilmente será recuperada ao longo da vida.
Só depois é que começa a verdadeira perseguição. Experimenta-se desde "uiraçá-falso" até o bom e velho "sabiá-gongá". Com quinze anos, pelo menos para os homens, o importante é encontrar pela frente uma "galinha-do-mato", mas, infelizmente, encontram-se mais "garrinchas-choronas". Já as mulheres adicionam à coleção aves conhecidas por "gavião-belo", ou um "cabeçudo", ou ainda um que canta o dia todo, de nome "canção-de-peito-amarelo". Prova de que o amor é inexplicável é a existência do chamado "cambada-de-chaves" (e tenha certeza que este encontrará por aí algumas donas).
Próximo aos 18, 20 anos, inicia-se a caça aos animais em extinção. Um dos preferidos é o guará, que antigamente habitava toda a costa do Brasil, mas hoje em dia tonou-se raro encontrá-lo. Estão apenas no pantanal do eixo Rio-São Paulo. Questão de sobrevivência: por causa de sua coloração, normalmente são exportados para confecção de adereços – mas sua carne também é muito apreciada. O "balança-rabo-canela" e o "pica-pau-de-coleira" também são outros pássaros em extinção muito queridos pelos colecionadores.
Depois vem a fase da caça objetiva: homens buscam a "noivinha-branca" e mulheres qualquer um que caiba "coleira" no nome ("sabiá-coleira", "batuíra-de-coleira", "bico-assovelado-de-coleira"). É a fase onde todos querem, sob quaisquer circunstâncias, encontrar o exemplar de exposição. Para a mulher, não importa prender um "nei-nei" qualquer; já os homens fogem das "freirinhas-de-coroa-castanha". Mas, na verdade, o que todos querem é encontrar um ser único, o pássaro mitológico. A fênix.
Segundo a lenda, apenas uma fênix pode viver de cada vez, e dura até os 97.200 anos. Ou seja, você só irá encontrar uma fênix durante a vida. É o mais belo de todos os animais: possui longas penas brilhantes, vermelhas e douradas, da cor do Sol poente. Tem, ainda, o poder da auto-combustão – causando sua própria morte para fugir do fim anunciado –, depois renascendo de suas próprias cinzas. E é aí que está toda a beleza e magia do amor.
Encontrar sua  própria fênix é o verdadeiro desafio do ser humano. Arrisco-me a dizer que ela só aparece disfarçada, e por isso é que é preciso tentar tanto. Saber diferenciar a morte de um pardal da "auto-combustão" da fênix é o grande segredo. Elas estão sempre aí, uma para cada um, disfarçadas de urubu ou pintassilgo, cantando com sua voz ao mesmo tempo melódica e triste, apenas esperando reconhecimento. Só depois de adivinhada a charada é que se revelam, se transformam. Eis surge a pergunta: mas por que raios elas próprias não se identificam? Ora, se só existe uma fênix para cada um, e disfarçada, pode ser que nem mesmo elas saibam que o são. Pode ser que seja exatamente esse o feitiço da bruxa. E justamente onde reside toda a graça da busca.
Se fosse tudo fácil, nasceríamos já acompanhados de nossas fênix, e a vida seria apenas esperar para o momento de expô-las ao público. Se elas se identificassem, não conheceríamos os "biguás", os "tiês-galo" ou os "murucututus". A graça está na aventura da caçada; na gincana onde se compete com outros colecionadores; no processo de se cuidar de um filhote de cuco até que cresça para se revelar ou não um ser mitológico; na análise minuciosa de cada pena de uma "viuvinha", até que não restem dúvidas de sua verdadeira identidade.
O gostoso é passar noites e noites pensando na morte da coruja, imaginando se ela era ou não sua fênix.

* Todos os nomes das aves são reais, tirados do sítio Brasil 500 Pássaros, do governo federal ( www.eln.gov.br).

terça-feira, 12 de junho de 2007

Mercado Negro

Olá!
Olá!
Tudo bem?
Tudo!
Trouxe?
Sim, esta aqui comigo.
Calma, melhor irmos para outro lugar.
Certo, alguém pode nos ver aqui.
Pegue o carro, dê a volta na quadra e pare do outro lado. Estarei te
esperando.
Mas e essa chuva toda?
Você é de açúcar?
Tudo bem.
Hey cara, proteja isso.
Não enche cara.
Hunf! Isso vale um nota preta.
Ta bom, ta bom.

Como combinado, eles se encontram no carro do outro lado da rua.

Ahhh que chuva hein!
Nem fale cara.
Então, cadê?
Cadê a grana.
Não confia nem nos amigos?
Amigos amigos, negócios a parte.
Ta certo, aqui a grana.
Se importa em contar para conferir.
Cara você não sabe como isso me irrita.
Qual é meu, isso aqui vale muito.
Eu sei, mas na terceira série você era menos desconfiado.
Terceira série...bons tempos.
Aqui ó... cem, duzentos trezentos, quatrocentos, quinhentos, seiscentos,
setecentos, oitocentos, novecentos, mil, mil e cem, mil e
duzentos(...)dois mil (...) pronto, três mil pratas!
Bom, bom, muito bom.
Agora me dá aqui, quero ver se é tudo aquilo que você me disse.
Toma aqui ó, quer um babador?
Palhaço. Nossa bem embalado com plástico de proteção.
Sabe como sou cuidadoso com meus negócios.
Que beleza, material de primeira.
E muito raro. Mais do que raro, esse aqui é único.
Negócio fechado?
Fechado.
Me deixe ali na esquina do outro lado da quadra de casa. Não quero que
me vejam.
Certo.
Aqui esta bom.
Foi bom rever você.
Quando tiver outro material deste mesmo cacife me avise.
Não é todo dia que consigo os rascunhos originais de quando o Stan Lee
estava criando o Homem Aranha.

Fim

Ciúme Fatal

Quem olhava de fora não percebia quão conturbado era aquele relacionamento. Max até que gostava da mulher, mas tinha um ciúme que beirava a doença. Praticamente não deixava Rosana sair de casa. Quando conversava com algumas das velhas amigas que ainda insistiam em procurá-la, Max repreendia:
- Já falei que não quero te ver de papo com essas fofoqueiras, Rosana. Elas são má influência para você.
E ela aceitava, calada. Com isso, nem conseguia se imaginar conversando com outro homem – só se dava ao luxo de falar com o pai, os irmão, os cunhados e, com ressalvas, o Teixeira, melhor amigo de Max.
- Com o Teixeira você pode falar. Mas só com Teixeira e ninguém mais, entendeu? Confio mais nele que em meu irmão!
Ela, inocente, nem reclamava. Vivia trancada em casa, longe das janelas, só cozinhando e costurando para o marido. E assim a vida se seguia, Rosana cada vez mais triste, Max cada vez mais feliz. De uma forma ou de outra, eles se entendiam.

O Emprego
Certo dia Max mudou de emprego. Foi para uma multinacional, com sede em outra cidade. Seu turno era de três dias, os quais ele passava fora. Mas não queria nem imaginar Rosana saindo de casa, ainda mais estando sozinha. Antes de sair, cochichava-lhe ao ouvido:
- Se você pensar em me trair eu te mato, entendeu? Te mato!... E só basta pensar.
Ela, já acostumada a ficar em casa bordando toalhas, cedia as pressões do marido e não saía nem para visitar a família. Até que um dia, sem mais nem menos, resolveu ir até a igreja. "Lá é um lugar sagrado. Max não vai ligar", pensava.
Em pouco tempo conheceu uma turma de amigas, não tão beatas quanto aparentavam.
- Quer dizer que teu marido não a deixa nem sair com as amigas? Mas que absurdo! – falava-lhe uma delas – Isso não pode ficar assim. Escuta: na minha casa, amanhã, vamos todas almoçar juntas, ok? Te espero lá.
Rosana voltou para casa sem saber o que fazer. Queria sair com as amigas, voltar a rir como fazia quando solteira, ser feliz. Mas também tinha respeito pelo marido.
Respeito não, medo.

O Almoço
Eis que decidiu ir ao encontro. Com muito medo e apreensão mas foi. Temia até que o motorista do coletivo a delatasse para o marido. Chegando lá, partiu para a defensiva:
- Saibam, meninas, que só vou ficar alguns minutos. Meu marido chega hoje à noite e não quero nem que ele desconfie que eu saí de casa.
Mas como Rosana não bebia nenhum tipo de álcool desde a adolescência, ficou um pouco alta já na primeira taça de vinho. Depois da quinta taça e de algumas caipirinhas, estavam todas fazendo planos diabólicos:
- Vamos na sua casa esperar pelo seu marido. – dizia uma gorda que mal se agüentava em pé – Quando ele chegar, a gente amarra ele pelas pernas e...
- Isso! Isso! – respondia Rosana – Vamos matar aquele cachorro. Ele roubou minha vida toda para ele! Quero voltar a ser solteira, quero me divertir novamente.
Normalmente, aquelas moças ficariam assustadas com suas próprias idéias, mas já estavam completamente bêbadas. Pegaram mais uma garrafa de conhaque e foram até a casa de Max, esperá-lo para o plano fatal.

A Cilada
Chegando lá, armaram toda a arapuca: Rosana o esperaria na cama, de lingerie sensual, enquanto as outras estariam preparadas atrás das coisas do quarto, armadas com metros e metros de corda. Tudo preparado, esperaram por Max. Esperaram, esperaram e esperaram. Depois de uma hora, uma não se segurou e saiu de trás do armário:
- Chega! Não agüento mais. Vou esperar por esse canalha aqui mesmo, na cama, tomando um conhaque.
A idéia foi como a luz que faltava na noite daquelas mulheres. Uma a uma, foram saindo de trás de cortinas, armários, penteadeiras. Sentaram as oito em volta de Rosana e tornaram a beber, conversar e dar risadas.
Até que, num dado momento, todas se esqueceram do que estavam fazendo por ali. Se viram de repente sentadas numa cama, em torno de uma mulher só de calcinha e soutien. Como se fosse algo natural, começaram a se acariciar e se tocar. Enquanto se beijavam, Max abriu a porta do quarto.
- Rosana, sua vaca! Então é isso que você faz enquanto eu estou trabalhando?
E com os seis tiros que lhe sobravam na pistola, matou as nove mulheres, com uma frieza e um cálculo impressionantes.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Gol de quem?

Como um torcedor pode ser feliz se a maior emissora de tv do país
insiste em te sacanear. Será que ela não sabe que meu coração já não
anda bem das pernas e meu time contribui muito para isso. É um susto
atrás do outro, mas a tal emissora tem um fetiche sádico de não só
sacanear o meu, mas o coração de milhões.
Sem falar que assistir jogos do curintia (é timão mano) é detestável,
mas não é só isso. A emissora vai além com um contrato diabólico,
digamos, ela obriga a sua "parceira" o ex-canal do esporte a transmitir
o mesmo jogo. Ou seja o torcedor sofredor apaixonado tem opção de
assistir o jogo do curintia (é timão mano) em duas versões. Ou assiste
na maior emissora do país com o Casagrande e seus cometários que parecem
ter sido gravados antes da partida de tão sagazes que são, ou no
ex-canal do esporte, com o ex-engraçadão Neto.
E tem mais, a diferença na qualidade de imagem das duas tvs é gritante,
pelo menos lá em casa, na maior do Brasil é boa, não tem do que reclamar
da imagem. Já no ex-canal do esporte tem-se a impressão de estar
assistindo o campeonato de 1989. É quase nostálgico, mas tudo bem. Ai o
sujeito está lá assistindo o jogo do curintia (é timão mano) esperando
por notícias do seu time e pensa: mas que bela merda. Por que raios
esses pilantras passam o mesmo jogo. Meu time jogando no mesmo horário e
esses canalhas (pra não falar putos) me sacaneiam desse jeito.
Tudo bem o torcedor supera, afinal mesmo que tivesse sendo transmitido o
jogo do time dele, ele iria querer saber todos os resultados, até o do
curintia (é timão mano). Mas no quesito informação dos gols da rodada a
maior do Brasil se supera. O que é aquela bolinha "pintando no cantinho
da tela"? É muita tortura!
O torcedor tem que esperar a boa vontade do narrador para saber de quem
foi o gol. Ai o camarada diz: pintou a bolinha, tem gol no campeonato. E
nesse momento o curintia (é timão mano) chuta uma bola que passa
"tirando tinta da trave" e o sujeito não diz de quem foi gol. Nessa hora
o torcedor está arrancando os cabelos. E para me sacanear, tudo bem não
é culpa dele, ficam mostrando o replay do lance do belo chute do craque
com nome de moça Rosinei.
Depois do reprise lance e do comentário maravilhoso e dispensável do
Casão, antes do narrador falar de quem é o gol, tchuns outra bolinha
aparece. Não tem como não xingar, porque esse puto não disse logo de
quem foi o primeiro gol da primeira bolinha. Mas quem nunca ouviu aquele
papo de que a maior tv do Brasil manipula a população, pois então agora
além disso ela quer sacanear o otário aqui que esta assistindo o
curitntia (é timão mano). Na maior cara de pau diz que os dois gols
foram em Florianópolis "e são dois Figueirense que vai atropelando o
Flamengo".
Minha úlcera cresce a cada segundo depois que o Casão faz elogios ao
Figuera. Desisto, assistir jogo do curintia (é timão mano) enquanto o
Mengão faz feio (tudo bem o tima está uma farsa mesmo), mas ficar na
esperança de um bolinha no canto da tela esperando por um golzinho no
meu time não da não. Pego o controle remoto para desligar e adivinha
quem aparece brilhando irritantemente no canto da tela? Sim ela, a
maledeta bolinha.
Figueirense três a zero, vai pra %$#@&&¨ filha da &%$#. Desligo a tv e
vou dar uma volta.

Fim

Ps: E não foi só isso o jogo terminou quatro a nada para os catarinas.
Ps2: Que "maravilha" hein Mengão!

O Mistério da Torre

Lá era gelado, fétido e escuro como toda boa torre medieval. Nada se via que não estivesse sob os teimosos feixes de luz, insistentes em passar pelas frestas do telhado. Vez por outra, pisava-se na cabeça de um rato ou um morcego; matava-se, mas não por maldade. Nem homens, nem ratos e nem mesmo morcegos viam naquela escuridão.
Por isso, não era raro passar a mão sobre os moluscos ou anelídeos que viviam sobre a parede. Para achar o caminho naquela torre de trevas, só se guiando pelo tato. Eram centenas e centenas de degraus ligando infinitos caminhos que levavam do nada ao lugar nenhum – era pelo menos o que se aparentava, já que não havia como saber em que ponto da torre estava. Muito homens morreram por lá, justamente por não acharem o caminho de volta. Somente em dois lugares dava para ter certeza da localização: na entrada da torre, um buraco feito aparentemente à força, e quando se alcançava o topo, já que a cabeça batia no telhado argiloso.
Por lá, ouvidos atentos captavam centenas de tipos de som distintos. Ouvia-se morcegos caçando os ratos para o café da manhã; o piar das dezenas de casais de joão-de-barro que se assentavam sobre as paredes de pedra; as próprias paredes gemendo em seu constante processo de dilatação e retenção; o eco da respiração e da pisada e do soluço e da batida do coração que pareciam ressoar eternamente naquele sem-fim de escuridão e medo; e até um som de martelo que nunca cessava, dando mais ar de terror àquela construção.
Quando se fala em torre, todo mundo pensa num castelo do Séc. XVI, naquelas torres de observação onde ficavam os lanceiros e granadeiros, prontos para anunciar e defender-se de qualquer ataque inimigo. Ou naquelas que serviam de abrigo para feiticeiros de longas barbas brancas, normalmente padrinhos e mentores dos reis. Ou então naqueles calabouços onde se jogavam os presos – até que estes descobrissem uma forma de fugir e virar heróis de conto infantil. Ou mesmo num lugar alto, muito alto, onde uma bruxa aprisionaria uma linda donzela, filha do rei de Happyland, até ela completasse dezoito anos e estivesse apta a casar com um jovem príncipe do reino vizinho, desde que ele descobrisse a charada para tirá-la de lá.
O fato é que a construção em questão é uma torre de quase trinta metros, sem ligação nenhuma com castelos ou contos de fadas, fincada entre dois prédios comerciais no centro da cidade, bem ao estilo daquelas construções abandonadas que serviriam de clubinho para qualquer turma de garotos de até a minha geração, a dos anos 80 – a última que passou a infância morando em casas de madeira e brincando nas ruas.
Mesmo sem castelo, feiticeiros ou donzelas, a torre está lá, com a grama do entorno sempre aparada e impostos rigorosamente em dia. Além disso, o dono do terreno, um velho chamado Malaquias Garfunkel, já recusou centenas de ofertas milionárias pelo terreno. Mas ele não vende, não dá explicações e todo mundo fica sem saber o porquê.
Ano após ano, geração após geração, oferta após oferta, o mistério da torre permanece.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Robson se justifica

Na verdade eu nem conheci Suzi. Eu a observei por dois anos  no colégio, mas a gente nunca conversou. Só uma vez, que eu a segui na biblioteca e a ajudei quando ela derrubou uma estante, ela me disse "obrigada". Eu nem respondi, mas essa foi a única vez que nós "conversamos".
Eu sempre estava perto de onde ela ficava. Fosse com as amigas ou com a família, eu estava lá. Não sei nem como ela não percebia. Eu ia todos os dias na aula de balé dela. Ficava olhando de fora, e acho que ela nem me via. Eu ficava imaginando ela dançando no nosso casamento, ensinando a nossa filha os primeiros passos. Pra mim ela era a melhor dançarina do mundo.
Nas aulas de natação eu também estava lá. Outros meninos também iam, mas para ver ela de maiô. Eu não. Eu ia porque queria admirá-la; nosso amor é muito mais do que sexo, sexo e sexo. Nosso amor tem sentimento, tem substância. Eu queria apenas vê-la para guardar aquelas cenas na memória.
Suzi era como uma rainha, pelo menos para mim. Tudo que ela fazia dava certo; tudo que ela tocava virava ouro. Numa aula de circo que a gente teve, e o colégio inteiro participou, ela mandou tão bem nos trapézios que eu já a imaginei no Cirque du Soleil. Aquelas labaredas de fogo pulando cada vez que ela dava piruetas no ar. Só eu achei graça quando ela caiu na rede de proteção.
Suzi é perfeita; Suzi é tudo para mim. Só te contei tudo isso porque eu precisava me justificar. Eu vou matá-la, mas tem motivo. Ela não poderia ter me trocado pelo Robertinho.
Desgraçada.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Rebeliões

Dias desses eu fui preso. Sim, preso! Mas não se assuste, não foi tão ruim assim.
Passei umas poucas noites numa prisão estadual comum, onde come-se mal, bebe-se mal, veste-se mal, dorme-se mal e até urina-se mal – mas é um ótimo lugar para os relações públicas.
Eu era inocente, claro; fora preso por engano. Eu e todos os meus 114 companheiros de cela. Na cadeia todo mundo é inocente, não sabe de nada e qualquer informação sobre os crimes só falando com os respectivos advogados.
Numa tarde, ainda, tive a sorte de pegar uma rebelião. Sorte mesmo, afinal isso é tão raro. Fiquei lá só três dias e presenciei uma rebelião! Quanta honra.
Eram quase uma centena de presos, todos encapuzados para não aparecer na televisão, com as armas em punho e dando gritos de guerra. Os policiais e carcereiros – cidadãos comuns, coitados – ficaram amedrontados do lado de fora das grades, pedindo calma, calma prisioneiros. "Não se preocupem. O diretor Clóvis Barbosa está vindo e tudo irá se resolver".
Com o anúncio, veio o silêncio geral. Lá todos conheciam o Dr. Clóvis. Todo mundo já estivera um dia na sala do diretor, seja para pagar um adiantamento de droga, seja para pegar um adiantamento de droga. Todo mundo sabia que o diretor nada iria resolver, mas ficaram felizes que ele estivesse ali, afinal fazia quase um mês que não aparecia. Os viciados já estavam na "neura".

No dia em que fui solto, corri até Brasília para reclamar ao STF. Tudo bem por lá, já que fui o primeiro a chegar ao tribunal. Ainda era terça-feira à tarde, início dos trabalhos na capital federal, e todos me atenderam com simpatia, apesar da ressaca.
Caso resolvido – era apenas um problema de homônimos –, hora de voltar para casa. Brasília, quinta-feira, 14h, Aeroporto Internacional Presidente Juscelino Kubitschek: só mesmo os muito inocentes para pegar um avião nesse horário. Em plena quinta à tarde, bem no horário de pico! Ainda mais com essa crise toda atingindo a área (da aviação, e não em Brasília: na cidade todo mundo é inocente, não sabe de nada e qualquer informação sobre os crimes, digo, assuntos políticos, só falando com os respectivos advogados, digo, assessores).
É bom ressaltar que, em Brasília, as quintas-feiras depois do almoço funcionam como seis da tarde das sextas-feiras no resto do Brasil: terminam os expediente e todos querem voltar para casa, curtir um belo fim-de-semana ao lado da família. Por isso todo mundo tem pressa.
Como não poderia deixar de ser, falhas no Cindacta 1 causaram atrasos nos vôos. Bem, atrasos não: "conexão tardia" é o que as companhias aéreas preferem anunciar. É como engarrafamento na Visconde de Guarapuava em dia de chuva, quando ficam todos irritados e os xingamentos surgem naturalmente.
A cena que se seguiu foi um perfeito déjà vu:
Eram quase uma centena de políticos, todos mascarados para aparecer na televisão, com as pastas em punho e dando seus gritos de campanha. Os controladores de vôo e funcionários das companhias aéreas – cidadãos comuns, coitados – ficaram amedrontados do lado de dentro das grades, pedindo calma, calma Excelências. "Não se preocupem. O ministro Waldir Pires está vindo e tudo irá se resolver".
Com o anúncio, veio o silêncio geral. Lá todos conheciam o Dr. Pires. Todo mundo já estivera um dia na sala do ministro, seja para pagar um adiantamento de verba, seja para pegar um adiantamento de verba. Todo mundo sabia que o ministro nada iria resolver, mas ficaram felizes que ele estivesse ali, afinal fazia quase um mês que não aparecia. Os viciados já estavam na "neura".
Enfim, qualquer semelhança não é mera coincidência.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Pegadinha da cegonha

- Andréia?
- Beto! Olá.
- Tudo bem?
- Tudo e você?
- Tudo certo. E ai como vão as coisas?
- Bem, e você o que tem feito?
- Eu estou fazendo uns desenhos.
- Que legal! Quadrinhos?
- Isso agora sou cartunista de carteira assinada.
- Que bom, sabe que sempre torci muito por isso.
- Obrigado. Esta passeando?
- Não estou esperando meu namorado.
- Namorado?
- É, o Fábio lembra dele?
- Ahan, lembro sim.
- O que foi Beto?
- Nada não.
- Po, faz um tempão que não estamos juntos.
- Não esquenta não.
- Mas e aquela loira aguada, pagodeira, sem graça, de cabelo de chapinha?
- Não fala assim da Manu.
- Desculpe, mas ela é detestável.
- Estou enganado ou está rolando um ciuminho.
- Palhaço, claro que não. Ela é muito chata, você merece alguém melhor.
- Sei sei, mas aquele Fábio não vale nada. Maior mané aquele cara lá.
- Nem é.
- É sim, um Zé-Ruela.
- Estou enganada ou está rolando um ciuminho.
- Não, você está coberta de razão. Morro de ciumes de você.
- Hummm... sei não.
- O quê?
- Não sei se foi bom a gente se encontrar.
- Por quê?
- É estranho. Sei lá, parece que você sabe tanto sobre mim.
- E você sobre mim.
- É deixa pra lá.
- Vai dizer que você não sente saudades.
- Beto!
- Andréia.
- Isso não é pergunta que se faça.
- É só responder sim ou não.
- Não quero falar disso.
- Por que não?
- Porque não posso. E já é tarde de mais.
- Como assim, tarde de mais?
- Gosto muito de você. A gente não devia ter acabado. Mas agora é tarde.
- Me explica melhor isso.
- Estou esperando um filho.

Fim

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Esperto ginecologista

Laerte é casado e muito bem casado. Sua senhora, Sofia, era a aluna mais desejada na época da faculdade. Linda, esperta, atenciosa, compreensiva e inteligente, ela virou o tipo da mulher perfeita.
Recém-casados, tiveram um filho que é um espetáculo. O garoto já entrou adiantado na escola e, ao que todos dizem, é um prodígio no futebol.
Como não podia deixar de ser, Laerte é o melhor dos maridos. Não pensa nem nunca pensou em trair. E, convenhamos, nem tem motivos. É o que chamam de genro que toda sogra pediu a Deus.
Laerte, como a mulher, é ginecologista. Eles só não têm uma clínica juntos porque pensam que o convívio poderia afetar o relacionamento. Cada um na sua, ninguém incomodando ninguém, eles vão seguindo suas carreiras – de muito sucesso, à propósito. O fato é que, sendo especialistas na mesma área, Sofia não tinha qualquer ciúme do marido.
Um dia, numa sexta-feira qualquer, Laerte quase teve um grande problema com a esposa. Era quase 18h e ainda lhe restava uma paciente. Como Pâmela era especial – esposa de Antunes, seu melhor amigo –,  o médico abriu uma exceção, marcando a consulta para 18h15. E como a secretária saía as seis, ficou esperando sozinho pela última cliente.
Só quando o relógio apontava 18h40 que Laerte desistiu de esperar por Pâmela. Aí então iniciou os trâmites para fechar o consultório. Como era sexta-feira, preparou um belo drink Blood Mary, só para relaxar.
Quando o computador finalmente desligou, soou o interfone:
- Laerte! Sou eu, Pâmela. Desculpa o atraso, mas é que o Ricardinho se machucou e eu tive que levar ele para o pronto-socorro.
Visto que Ricardinho, filho da moça com Antunes, era seu afilhado, a desculpa foi aceite. Pâmela entrou, pediu outras mil desculpas e sentou-se na cadeira. Laerte, cortês, ofereceu-lhe um Blood Mary enquanto o computador não religava.
Conversaram por um tempo. Laerte contou para Pâmela sobre Sofia – elas ainda não se conheciam –, perguntou sobre Antunes, Ricardinho, enfim, conversa de amigos. Fazia tempos que não se falavam.
Eis que, de repente, um barulho surge à porta. Antes que os dois pensassem que era um ladrão, ouviu-se um barulho de chaves. Àquela hora só poderia ser Sofia. Bem... Ela ainda não conhecia Pâmela.
Como explicar uma cliente, sozinha com ele, às sete da noite, bebendo Blood Mary sob a luz azul do protetor de telas do Windows? Para evitar uma crise matrimonial, Laerte só achou uma solução:
- Depressa, Pâmela! Tire a roupa e deite-se na cama de pernas abertas!
Depois pensou, aliviado: "Ufa! Imagina se minha mulher vê aquela cena... O que ela não iria pensar, meu Deus?"

Futebol, Mulher e Coca -Cola

Vitor, o Vitinho, era um pereba no futebol. Sempre era o último a ser
escolhido nos jogos e isso que na maioria das vezes só jogava se
aceitasse ser o goleiro. Ele também não era nenhum Dida, mas quebrava o
galho. No máximo defendia mais por incompetência dos garotos que
chutavam em cima dele. Mas Vitinho era irmão do dono da bola, o Fio,
isso fazia com que ele sempre estivesse no jogo.

Certo dia os caras da rua de baixo desafiaram o time do Fio para um
jogo. Mas não era jogar por jogar, era um jogo valendo coca (o
refrigerante). O desafio foi aceito, o grande jogo seria na quadra da
escola no sábado às três e meia. Dois tempos de vinte e cinco minutos e
sem juiz. O fato de não ter juiz poderia fazer com que o jogo
descambasse para a pancadaria e isso deixava o time de Vitinho tenso. Os
caras da rua de baixo eram mais experientes, pois jogavam campeonatos e
tinham dois caras que vieram do Uruguai (Lucho e Ramon) que jogavam bem.

Durante a semana Fio foi preparando a rapaziada, e já foi avisando que o
Cabelinho seria o goleiro e que Vitinho jogaria na linha, mas seria
reserva. Vitinho apesar de perna de pau tinha muita vontade de jogar.
Demorou mas aceitou a reserva no time do irmão. Não era só a coca, mas a
moral da rapaziada estava em jogo. Para não correrem o risco de o time
perdedor não pagar a aposta, antes do jogo os dois time deixavam a grana
com o Pezinho, dono da Lanchonete. O time que ganhasse podia retirar a
grana.A rivalidade era tamanha que o time do irmão de Vitinho não jogava
quando os caras ada rua de baixo estavam na quadra e o contrário também
ocorria. Se o time do Fio estivesse lá os caras da rua de baixo não
jogavam.

Chega o sábado, depois do Globo Esporte a rapaziada se reuniu na casa do
Cabelinho para jogar Winning Eleven, era uma espécie de concentração. O
Bomba, um dos caras da rua de baixo, liga para o Fio e perguntam se o
jogo pode ser adiado é que um dos gringos não poderia jogar e tals. Era
uma chance de ouro para o time da rapaziada, um dos gringos não jogaria,
O irmão do Vitinho disse que não tinha como porque todos tinham
compromisso para depois do jogo e insistiu para que o jogo fosse
realizado mesmo sem um dos gringos. O cara da rua de baixo aceitou.

Três da tarde o time da rapaziada se reúne na frente da escola e parecem
empolgados com o desfalque no time da rua de baixo. Quinze minutos
depois os caras da rua de baixo chegam e com os dois gringos, tudo não
passava de uma tática malandra do time da rua de baixo. A famosa milonga
uruguaia, traduzindo a malandragem uruguaia (já diria Galvão Bueno).
Aquilo foi um balde de água fria, mesmo assim a rapaziada não deixou que
ficaram surpresos com a milonga do inimigo.

Começa o jogo, os caras da rua de baixo saem com a bola. No primeiro
lance uma tabela entre Lingüiça e Vesgo deixou o um uruguaio na cara de
Cabelinho, que nada pode fazer. Rua de Baixo 1x0 na Rapaziada. O jogo
segue com domínio total dos caras da rua de baixo, bola na trave, Lucho
barbarizava com o jogo. Até que Cabelinho sai do gol e dá um "jacaré" no
uruguaio. O clima fica pesado.

- Você não sabe jogar sem juiz?

- Foi mal, lance do jogo.

- Você vai ver um lance do jogo na sua cara...

A discussão não durou muito e o primeiro tempo terminou um a zero mesmo.
A vitória do time da rua de baixo estava se desenhando. Fio da uma dura
na rapaziada e pede mais empenho, afinal o jogo valia mais que a coca.
Ainda mais agora que as garotas chegaram para ver o jogo. A mais gata,
bonita, cheirosa, maravilhosa do Brasil era a garotinha ruiva, a Júlia.
Fio e Bomba eram afim dela. E isso deu mais dramaticidade ao jogo.

A bola rola para os últimos vinte e cinco minutos, na saída de bola fio
quis fazer uma graça para a ruivinha. Mas pisou na bola caiu sentado,
porém a bola sobrou para o Magrinho que de canhota acertou o chute da
sua vida. A bola foi na gaveta, um a um e novo ânimo para a rapaziada do
time do Fio. Entre caneladas, faltas e discussões o jogo foi chegando ao
fim.

Faltando pouco para acabar o jogo, Fio foi fazer outra firula e dessa
vez conseguiu se machucar sério. Torceu o pé e teve que sair, Vitinho
entrou em seu lugar,mas não foi para o gol e já foi fazendo besteira. Na
primeira vez que tocou na bola, deu um passe errado nos pés de Ramon que
não perdoou e marcou o segundo dos caras as rua de baixo. Foi uma ducha
de água fria, Fio estava puto da cara do lado de fora. Aquele seria o
fim para o time do Fio, até o próximo eles teriam que agüentar gozações,
sem falar na coca e na garotinha ruiva.

Depois do gol dos caras, Cabelinho foi para a linha e Vitinho foi para o
gol. E Cabelinho tinha habilidade. Num lance de sorte no último lance,
ele acerta um chute de fora da área, que desvia no Bomba e matou o
goleiro dos caras da rua de baixo. Depois do gol não teve mais jogo, a
decisão seria nos penaltis. Fio queria voltar para o jogo, mas não
conseguia ficar em pé. Seu pé estava inchado por causa da torção, sua
aflição estava estampada no rosto.

Pelo time da Rapaziada bateriam Cabelinho, Juca e Magrinho. Para os
caras da rua de baixo bateriam Ramon, Bomba e Lucho. No par ou impar
(melhor de três) ficou decidido que a Rapaziada começaria batendo, e lá
foi o Cabelinho. Tomou distância, deu a famosa paradinha e chutou no
meio do gol para a defesa fácil de Menino. O uruguaio Ramon bateu e fez,
Vitinho fechou o olho e nem foi na bola. Juca bateu e fez, por pouco
Menino não pegou. Bomba, como de costume mandou um foguete que Vitinho
nem viu a cor da bola. Magrinho bateu bem e empatou.

Agora tudo estava nas mãos de Vitinho, se pegasse o jogo continuava se
não acabaria o jogo. Lucho, que além de jogar bem era um mala, fez uma
embaixadinhas antes de bater e olhou com desprezo para Vitinho. O gringo
não pegou muita distância e bateu... Vitinho de um lado e bola na
traaaaaaaaaave. Era um sopro de vida para o time da Rapaziada, agora
ficou nas mãos e pés dos goleiros a decisão.

Todo mundo sabia da ausência de competência futebolística de Vitinho,
diziam que ele tinha um chute da menina. E lá foi ele, dois passos da
bola.. correu, bateu na trave e gol. Mais uma vez Menino quase pegou.
Agora é Menino quem vai para a cobrança, ele foi quase na metade do
campo para tomar distância. Corre para a bola bateu, Vitinho escolhe o
canto e pula, foi uma paulada de Menino... a bola bate no rosto de
Vitinho, na trave e sai.

Euforia do time da Rapaziada, surge um novo herói. Vitinho o
perna-de-pau, o pereba, o que só joga porque a bola é do irmão dele.
Agora era festejado pelos amigos e as meninas também estavam torcendo
pelo time da rapaziada. Na lanchonete do Pezinho a rapaziada comemorava
feliz e contente tomando a merecida coca. De repente o Cabelinho percebe
que o Vitinho não estava por perto e pergunta por ele.

Do outo lado da rua, Vitinho de mãos dadas com a ruivinha indo embora.

Fim

A vida? ou A vida!

O homem é velho, 83 anos. Mas é um vovô brincalhão. Ou melhor: um bisavô piadista e cheio de prosa.
Sua saúde é exemplar, bem como seu humor. Quando não está praticando escalada no Chile ou surfe no Havaí, faz questão de juntar a família para um churrasco, regado, claro, a muito futebol e cerveja.
Todos adoram o velho "Sêo" Wilson. Filhos, netos, bisnetos, vizinhos, esposa, ex-esposas, amantes, frentistas, açougueiros. É um senhor bem quisto pela sociedade, tenha certeza. Também, pudera: ele é deveras simpático, falante, disposto e companheiro. Leva a vida do jeito que qualquer um gostaria. Não há quem não queira tê-lo por perto.
Porém um dia, numa dessas peças que o destino nos prega, "Sêo" Wilson teve um derrame cerebral – dirigindo. Dizem que foi por isso que ele não viu a curva.
Seu Kadett estava a 140 Km/h e entrou de aerofólio e tudo na sala de uma residência. Por sorte não havia ninguém em casa nesse dia, mas o fato é que "Sêo" Wilson teve que ser levado as pressas por uma ambulância.
Ainda desacordado, os médicos fizeram cerca de 20 cirurgias no velho para salvar-lhe a vida. Arrancaram-no as duas perna, um olho, o pâncreas, massa encefálica e tudo quanto é vesícula que se possa imaginar. Conseguiram manter o coração dele batendo.
O cérebro parou, mas o coração continua batendo.
Mesmo assim, "Sêo" Wilson sente dores. Muitas dores. Passa 22 horas do dia sedado por quilos e quilos de medicamentos. Nas duas horas que sobram, o vovô geme de dor. Não mexe um músculo sequer, mas geme de dor.
Os médicos garantem: "com o miocárdio que esse senhor tem, vai viver mais uns 20 anos até que o coração pare de bater". Vai viver 20 anos deitado numa cama, ligado a dez máquinas diferentes, sem comer, sem beber, sem praticar escalada no Chile ou surfe no Havaí, sem churrasco com a família, sem os amigos da vila, sem a vila, sem a vida.
Desses tempo que "Sêo" Wilson tem de "vida", 158.400 horas serão sedados. isso dá 6.600 dias, ou seja, 18, 3 anos. Sem falar que no resto, quando está acordado, "Sêo" Wilson não mexe o corpo; mas geme de dor. Muita dor.
Todos que o amam – ou seja, todo mundo, da Vovó Virgínia ao Padre Tomé – ordenam: "parem as máquinas, pelo amor de Deus!"
Não pode.
Eutanásia, substantivo feminino, segundo o Aurélio "morte serena, sem agonia, pela qual se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente reconhecidamente incurável".
Enfim, não entendo qual é o conceito de vida para ainda proibi-la.