quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

A vida é doce

Juro que estava apenas sentado no banco, como sempre fico, só observando o movimento. Gosto desses momentos de solidão porque nos dão no que pensar. Fico vendo as pessoas, as reações, os comportamentos. Várias questões existenciais pululam no e do meu cérebro. Quem quiser experimentar, comece pelas crianças e pelos velhos que, diferentemente do resto, não querem e não precisam (e quem precisa?) ter vergonha de terceiros. Fazem tudo do jeito que querem e na hora que bem entendem. É muito divertido.

Mas voltando ao meu juramento, digo apenas que era um dia normal como qualquer outro. Passava das seis e o sol já estava partindo, deixando uma leve brisa capaz de provocar calafrios aos desavisados de camiseta curta. Na praça onde eu estava sentado, nunca acontece nada. A graça está em observar o outro lado da rua, onde há um ponto de ônibus por onde circulam dezenas de pessoas por minuto. Eu olhava uma senhora com dificuldades de atravessar a rua quando senti uma mão pousando nas minhas costas.

Numa praça vazia e desconhecida como aquela, uma mão pousando nas costas só pode ser uma coisa: assalto. Na cidade em que vivo, aliás, quando qualquer pessoa vêm espontaneamente conversar com você é porque ela que sua carteira e celular – se vacilar, o óculos também. Na hora senti meu sangue gelar, e minha artéria aorta ardeu por causa da contração precipitada. Não sei se foi por causa do susto, mas quando me virei, tremendo, para ver quem era, minha vista estava tão turva que só consegui distinguir um vulto, que disse:

- Com licença. Posso me sentar com você?

Entre o sorriso de esperança que ela deu e minha resposta, com certeza se passaram mais de 10 segundos. Até que eu recuperasse a voz, a visão e a respiração, ela ficou parada, olhando no fundo dos meus olhos, o que contribuía ainda mais para o congelamento. Eram olhos sinceros, daqueles de pessoas que nunca falariam um palavrão ou mal de alguém. E o sorriso... Ah, o sorriso parecia me convidar para subir ao céu e conhecer os outros anjos como ela. Respondi-lhe "claro", e a partir daquele minuto minha vida nunca mais foi a mesma.

Ela segurava um livro (A Peste, de Albert Camus) que eu havia acabado de ler há poucas semanas. Seria um ótimo pretexto para ter sobre o que conversar. Quando terminei de calcular mentalmente o provável momento da história pela posição do seu marcador, ela perguntou meu nome. Eu sou curitibano, poxa vida. Por mais que seja falastrão, extrovertido e sem-vergonha, não estou acostumado com manifestações espontâneas para com minha pessoa. Pela primeira vez na vida tive que pensar antes de responder qual era meu nome:

- Uéslei – disse. E o seu?

Até hoje não consigo entender como fui capaz de responder aquilo sem engasgar. Meu coração batia tão forte que dava para sentir a garganta pulsando como britadeira. Meu olhos pareciam que a qualquer momento cairiam para fora do globo ocular, tamanha a força do sangue que se fazia chegar ao meu cérebro. Mas eu consegui. Perguntei e ela respondeu, doce e amável como sempre deve ser:

- Maria Eduarda.

Talvez jamais houve poeta ou romancista no mundo que não tenha escrito algo para pelo menos uma Maria Eduarda. É um nome essencialmente poético. É o nome da mocinha mais mocinha das histórias, aquela que ama o príncipe perdidamente mas não faz nenhuma loucura para tê-lo porque não quer magoar os pais. Marias Eduardas sabem esperar, não importa quanto, porque têm sempre a certeza de que o bem vencerá o mau. Para elas, no final tudo dá sempre certo. Marias Eduardas usam vestido branco com bolinhas vermelhas e correm descalças pelo bosque, sem medo do Lobo Mau.

Enquanto minha mente fazia essas divagações literato-psicológicas, ela me olhava com atenção. Com certeza meus olhos estavam brancos e infinitos, pois na hora já não conseguia enxergar nada. "O que você está fazendo aqui sozinho?" Fiquei sem reação. Se falasse a verdade – que adoro ficar sozinho –, ela poderia se levantar e sair para algum outro lugar, distante e frio, tão desprotegida, coitada.  O que eu menos queria naquele momento era me livrar daquele corpo celeste que, certamente por obra divina, havia delicadamente pousado ao meu lado.

- Eu adoro ficar sozinho – falei. Só pouco tempo depois me toquei que era a perigosa verdade, mas fazer o quê? Os impulsos nervosos foram até a medula e voltaram, sem nem dar tempo de eles darem uma passadinha pelo cérebro para uma rápida reavaliação. Puro reflexo.

Silêncio. Conjurei na mente a cena dela se levantando e indo embora, de costas, sem nunca mais olhar para trás. Deu-me um estranho abatimento porque era tudo muito verossímil. Olhei para baixo, esperando o pior, e ela, como se nada tivesse acontecido, perguntou-me se gostava de ler. Ah, aquilo foi demais para mim. O sangue começou a circular com mais força e eu senti as orelhas arderem. Minha nuca já suava de nevosismo e a camiseta subia e descia, numa respiração pausada e forte. Não sabia mais no que pensar.

Levantei-me e fui embora, de costas, sem nunca mais olhar para trás. Juro que nunca pensei em dizer, àquela hora, que queria ficar sozinho; mas já que disse, precisava ser respeitado. Ela falou demais. Maria Eduarda, tão linda e tão angelical, mas muito mal-educada: nunca daríamos certo juntos.

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