terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Da crônica esportiva

O cronômetro já marca 30 minutos e parece que a goleada está garantida. A bola rola de pé em pé, do lateral ao atacante, do goleiro ao meia armador, sem firulas ou perdas de tempo. Não há objetividade, a não ser que o objetivo seja cansar os espectadores. O último perigo de gol foi ainda nos acréscimos do primeiro tempo, quando o lateral do time verde cruzou e o efeito na bola quase enganou o goleiro adversário. Só que o placar ainda marca 0 a 0.

Na arquibancada, os gritos de apoio praticamente cessaram. Só alguns torcedores dos mais românticos ou novatos continuam entoando coros de "olê-olê" ao time vermelho. Um velho mais ranzinza, daqueles que acompanharam a época de ouro do escrete rubro-rubro, começa a dividir seu pacote de amendoins com as laterais do campo, xingando Deus e todo mundo. O jogo é em casa, a arquibancada está lotada, mas o silêncio que impera dá a sensação de aquilo é xadrez, e não futebol.

À beira do gramado tem alguém que pensa assim. Está lá, impassível, duro como um rochedo, talvez supondo o que terá para jantar ou em como conseguirá mais daqueles remédios para dormir. Não que esteja totalmente alheio ao jogo; o treinador já tem tudo programado, só precisa esperar o tempo certo.  Formulou uma tática para sair de campo vitorioso e sendo chamado de gênio pelos cronistas do esporte. Iria ganhar a partida, e disso tinha total certeza.

Na preleção, chamou os titulares e falou: "Vamos dar um nó na cabeça deles hoje. Na deles e na de quem estiver vendo o jogo. Vamos entrar com vocês três na zaga, vocês dois protegendo as laterais e mais vocês três como leões-de-chácara. O Luizinho faz a ligação e você, Adalberto, fica sozinho lá no ataque. Isso mesmo: jogaremos no 8-1-1.

"O primeiro tempo será uma festa para eles. Deixaremos que toquem a bola no nosso campo o quanto quiserem. Temos que dar a impressão de que o jogo é todo do time verde. Quando algum deles for arrematar para o gol, alguém daqui corta. Mas não vamos ter posse de bola, não. Que um monte de chutões. O jogo é deles, nunca se esqueçam.

"Quando começar o segundo tempo, vamos ficar mais com a bola. Não vai entrar nem sair ninguém, só mudaremos a mentalidade; os comentaristas vão adorar. Sem a bola, suportaremos a pressão. Com a bola, tocaremo-la de um lado para o outro como que tentando furar o bloqueio adversário. Perto dos 40 minutos, saco vocês três (e apontou para um zagueiro e dois volantes) para por aqueles três magrelos do juvenil. Vocês três, portanto tratem de correr bastante e cansar os adversários.

"E vocês, rapaziada, vão entrar lá e fazer a festa. Estará todo mundo cansado de toda ladainha que foi o jogo – inclusive os torcedores – e então a partida será de vocês. Pode driblar, correr, fazer firula; só não esqueçam de marcar. Se fizerem mais de um gol, melhor. Mas não esqueçam que, depois de hoje, vocês três serão os heróis do time. Futuras promessas da seleção.

"E eu serei o maior gênio tático do futebol brasileiro".

Aos 40, tudo como tinha de ser. Chamou os três mais jovens do elenco e sacou os três cansados. Na televisão, um comentarista disse "foi apenas uma substituição física. Os três estão cansados e o treinador preferiu tirá-los. Vamos ver o que esses novatos são capazes de fazer, mas não sei não..."

Nesse momento, uma lufada de sabedoria pareceu cair sobre alguns jogadores do elenco vermelho. "Nós vamos nos matar só para que o 'professor' seja chamado de gênio?", pensavam alguns deles. Outros se olhavam, como que adivinhando o que o companheiro pensava. Todos esperavam apenas um aceno de cabeça para entender finalmente o que fazer. Ninguém se mexia. À beira do campo, acontecia a substituição. A torcida apenas assistia, nem vaiava nem ovacionava. Ninguém na verdade conhecia os três rapazes que entraram para salvar o jogo.

Sobre os que estavam em campo, então, caiu outra luz. Pensaram – como se isso fosse possível – em uníssono: "Aqui tem 80 mil pessoas torcendo para que a gente vença esse jogo. O treinador terá lá seus méritos, mas quem correrá, se esforçará, somos nós. E nós é que seremos lembrados como o time dos sonhos; eu é que serei o melhor lateral (ou volante, ou atacante, ou goleiro, dependendo de quem pensava). É hora de dar tudo de mim e levar esses três pontos".

E o time começou um verdadeiro carrossel. A torcida se animava, a bola parecia brilhar. Os três que entraram botaram sufoco na zaga adversária. Em menos de dois minutos, mais de oito chutes a gol. Duas bolas na trave. Pareciam, finalmente, alegres em jogar futebol. Aos 45, a redenção: cruzamento pela direita, matada no peito e gol de bicicleta. O jovem que acabara de entrar salvou o time e o dia. A arquibancada fervia num delírio jamais imaginável depois de um dia daquele. Todo mundo se abraçava, havia pipoca e cerveja voando por todos os lados. Parecia uma final de campeonato.

No túnel, de volta aos vestiários, alguns jogadores davam entrevistas: "Foi mérito do professor. Ele soube ler o jogo e colocar as peças certas no momento certo. O time está unido num objetivo comum e maior do que todos nós". "Aqui a gente forma uma família, e o professor é nosso pai. Ele me deu a chance e eu aproveitei. Dedico o gol a essa torcida maravilhosa que nunca deixou de nos apoiar". "Fiz o meu trabalho o jogo inteiro. Não foi fácil segurar o ímpeto do time verde no primeiro tempo, mas sabia que seríamos recompensados. Tudo isso é graças as professor; ele é o maior gênio que já tivemos no futebol".

Já em casa, jantando ostras ao lado da mulher e dos filhos, o treinador não tirava o sorriso do canto da boca. "É fácil enganar esse povão. No futebol basta ganhar; um a zero ou três a zero, não importa. Por mais feio que seja o jogo, o que importa é o placar. O que vale mesmo é mostrar pro vizinho que 'meu time é melhor que o seu'. É muito fácil ser gênio nesse país".

Sem muito esforço mental – e, claro, com toda a licença poética que me é permitido conceder – , é possível trocar o treinador pelo governo atual de situação, os jogadores pelos subordinados da situação (ou os que querem aparecer por causa dela) e os torcedores por nós, os bobos que só queremos que o time ganhe.

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