segunda-feira, 7 de abril de 2008

O velho

Peguei o primeiro bonde do dia e fui para o centro. Era uma manhã gelada e clara, desperta do sono pelo canto dos pássaros. No banco ao lado do motorista havia um senhor de parcos cabelos brancos, provavelmente um aposentado buscando diversão, segurando uma antiga e longa bengala de madeira. Cada passageiro que entrava no veículo era saudado pelo velho com um sorriso sincero e um caloroso "bom dia". Na minha vez respondi "bom dia, velho" e ele me estendeu a mão, ostentado um sorriso maior ainda. Adoro chamar velhos de "velhos", pois dá a impressão de que sua condição de idoso não interfere em nada. E de fato não interfere. Ao contrário daquele falso respeito das pessoas que chamam a velhice de "melhor idade", chamá-los de "velho" não aparenta que o fato de sê-lo seja um catalisador da sua condição de nada no mundo. Velhos são engraçados.

Desembarquei quase uma hora depois no centro novo da cidade. Aqueles edifícios arranha-céus me impressionaram. Pensei com meus culhões o quão perigoso seria morar num bichão daqueles. Toneladas e toneladas de concreto apoiados sobre uma fina camada de terra (embaixo existem galerias de esgoto) e sustentados por uma simples viga de aço e cimento. Olhei para o velho que chegara com dificuldades ao meu lado e falei "você moraria num lugar desse?" Ele pensou sem tirar os olhos do topo do prédio; coçou a cabeça e disse "na minha idade, meu filho, você já não duvida mais das capacidades técnicas do ser humano". Entendi aquilo como um sim e convidei-o para tomar um café na lanchonete da esquina.

Era um velho muito simpático. Aparentava ter pouco mais de oitenta anos, e sua saúde era impecável. Via seus olhos brilharem a cada vez que o chamava de "você". Chamo velhos e autoridades de "senhor" quando a ocasião exige. Numa condição de igualdade, como quando somos apenas bons amigos tomando café da manhã, não há tratamento mais respeitoso do que "você". Não dissemos nossos nomes; ele era apenas o "velho" e eu apenas o "jovem". Nos entendemos bem assim. Ele me contava histórias, eu o contava planos. O velho já tinha feito muitas coisas que eu ainda nem sonhava em fazer. Esteve na guerra do Paraguai, no lançamento do rádio, na posse de vários presidentes. Foi remador do Flamengo, artista de circo e alpinista nos Andes. Acho até que oitenta anos era pouco para ele.

Passado um bom tempo desde que sentamos na lanchonete, finalmente perguntei o que ele estava fazendo àquela hora no centro da cidade. Ele me respondeu sem tirar o sorriso do rosto que tinha um velório a ir. Era um grande amigo que tinha partido, veterano da guerra como ele. "Tem uma época na vida em que você conhece mais gente morta do que viva", me falou. Questionei-o, então, se não estava triste com isso e ele me disse resignado "de jeito algum; ele finalmente completou seu ciclo". Tentei não entender e pedi para acompanhá-lo até o cemitério. Ele disse que sim, então pagamos a conta e saímos ao encontro da morte.

Já nem lembrava mais o motivo da minha ida ao centro. Eu era apenas o "jovem", amigo do "velho", que estava indo junto prestar as últimas homenagens ao amigo falecido. Fui para tentar entender o que pensam os velhos sobre a morte. Chegando na capela, não vimos mais do que cinco ou seis vivalmas. Todos velhos, inclusive os filhos do morto. Ninguém chorava, todos riam e contavam histórias. Na hora da morte, todo ser humano é bonzinho, mas ali, entre os amigos, isso era mais do que da boca para fora. Era um sentimento puro e sincero. O velho no caixão sorria. Todos em volta riam das suas peripécias. Naquela hora tive certeza de que ele era um sujeito querido e fanfarrão.

Meu amigo "velho" pediu licença para se despedir daquele corpo inerte. Me apinhei numa cadeira próxima e fechei os olhos. Fiquei só escutando, e o velho dizia: "vá em paz, irmão. Divirta-se lá e não esqueça de guardar um lugar no seu time pra mim. Eu já to chegando. Sua estadia por aqui foi boa enquanto durou, mas agora você precisa ir lá e dar um pouco de diversão pro resto do mundo. Mande um abraço pro Elvis, se você o encontrar". Dito isso, deu um tapinha na cara do morto e gritou "grande Cabeça". E o Cabeça se foi.

Um comentário:

Guylherme Custódio disse...

Belo. Incrível. Esse é daqueles!!!