segunda-feira, 14 de abril de 2008

Chove chuva

Finalmente chegou a chuva. Depois de semanas e mais semanas de secura e dos olhos ardidos por causa do pó, ela chegou. Não que eu esteja agradecendo, muito pelo contrário. Nem tenho lavoura de arroz ou plantação de morangos silvestres para precisar dessa água toda... Aliás, foi por causa dela que demorei quase uma hora para andar os quatro quilômetros que separam minha casa do trabalho. Odeio-a. Chuva só é bom em três situações: para molhar as plantinhas, para os índios (não sei por qual maldito motivo tenho a impressão que os índios adoram a chuva) e para as canções de amor.

Sim, senhor. Para as canções de amor.

Sei lá por quê. Deve ser por causa da natureza meio esotérica do verbo chover. Na escola a gente aprende assim: "Ontem choveu. Cadê o sujeito dessa oração? Não existe. Não, ele não está oculto. Ele simplesmente não existe. Joãozinho, cala a boca!" Talvez o fato de não ter sujeito exima a chuva de qualquer culpa. Pode ver que a chuva sempre molha alguém nas canções. Enquanto o Falamansa diz "oh, chuva, peço que caia devagar/só molhe esse povo de alegria", Caetano Veloso "se beija e se molha/de chuva, suor e cerveja". Sem sujeito, a culpa não recai sobre nenhuma pessoa. Alguém dirá que a chuva é obra de São Pedro, mas eu que não serei o primeiro louco a processá-lo.

Nessa curta e rápida pesquisa sobre as músicas que falam de chuva e amor (e viva o Google!), uma coisa me deixou intrigado. Tenho a impressão de que o amor – e aqui falo do sujeito amor, o ser amado – nessas canções, além de cego, é burro. Ou será que minha insensibilidade chegou a tal ponto que não vejo mais romantismo numa camiseta molhada? É que, na verdade, algumas dessas letras me dão a impressão de que o sujeito apaixonado está seco e aquecido numa sala bem iluminada, com lareira, TV de plasma, cascata de camarões e de frente para o mar, enquanto o objeto da sua paixão está no meio da rua, com frio e molhado igual a um frango de granja. Veja o exemplo de Sandy e Júnior na música Cai a Chuva: "cai a chuva/e molha meu amor/cai a chuva/vai molhar o meu amor". Apesar da construção da estrofe parecer simples – OK: é simples –, ela dá uma impressão de deboche. É como se tivesse um "otária" subentendido ali. Tipo "ei, chuva! Vai lá molhar o meu amor, aquela otária", e aí vem uma risadinha sarcástica. Com a entonação que o neto* de Francisco dá, então, fica parecendo uma tiração de sarro, quase que uma entrevista do Pânico.

Um exemplo mais óbvio – e que não poderia faltar – é do grande Jorge Ben. No final da música Chove Chuva ele canta "por favor chuva ruim/não molhe mais o meu amor assim". Com certeza é um pouco mais romântica do que a poesia do Júnior, mas ele não deixa de estar devidamente abrigado e aquecido enquanto ela está no meio da rua, sob um toró descomunal, sem guarda-chuva e desviando dos carros que lhe atiram a água barrenta das poças. Nesse caso, a palavra que fica subentendida é "coitadinha", que, convenhamos, não é muito mais nobre do que "otária". Mais suave talvez, porém mais nobre nunca.

Se você quer saber, tomei chuva sim. Me sinto um coitado de um otário. Ou um otário coitado. Enfim, morram.

*Para mim, todos os seis da velha guarda são os filhos de Francisco. Portanto, se você é filho dos Amigos, você é neto de Francisco.

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