segunda-feira, 3 de março de 2008

O primeiro segundo beijo

Era basicamente uma turminha comum de pré-adolescentes nouveal rich numa tarde de domingo. Sentados esparramados e espalhados pela calçada ao lado do mercadinho, conversavam sobre futebol, desenhos animados e o mundial de skate. Garrafa era o único que estava quieto, como que completamente imerso em seus pensamentos. Olhava fixo para a ladeira no fim da rua, como se de lá viesse algo que lhe chamaria a atenção. Mas não pensava em nada, e seus olhos sumiam atrás das lentes grossas. Lembrou-se que já nem precisava mais deles, mas não haveria sentido o apelido se por ventura parasse de usá-los. Até pedira para a mãe tirar os graus da lente para que pudesse usá-los sem comprometer mais a visão. Sentia-se mais inteligente com os óculos no rosto.

Garrafa era uma espécie de líder carismático da turma. Talvez por morar bem no centro da vila, exatamente no único caminho para o campo de areia da prefeitura, ninguém esquecia dele na hora das brincadeiras. Era também o único ali que já tinha beijado uma garota na boca, e constantemente repetia isso – o que apenas lhe confirmava a condição de líder. Fora há dois anos, sim, e com uma prima, mas era o único que sabia explicar como é encostar uma língua na outra. A maioria da piazada ainda nem ligava para, pois aos 12 anos jogar caçador menino-contra-menina parece mais divertido do que encostar numa garota, mas alguns já chegavam aos 13 e a possibilidade de parar de puxar os cabelos das meninas já lhes parece bem aceitável.

Sempre de chinelos estilo papete, bermuda de sarja e camiseta pólo, Garrafa parecia mais velho do que os outros da sua idade. O bigodinho ralo, conseguido à base de muita gilete "para engrossar os fios", também lhe dava ares de precoce. E, afinal, já havia beijado, enquanto todos os seus amigos ainda treinavam as técnicas com uma laranja ou um copo de gelo. Sentado no meio fio, ainda olhando para o fim da rua, Garrafa começou a ficar com uma cara preocupada; não disse para ninguém, mas o que queria naquele momento era beijar mais e mais, entretanto não sabia como fazer. Sua primeira vez fora com a prima Lúcia, na despensa da casa da avó; não teve que falar nada, nem antes e nem depois.

Para resolver o imbróglio de uma vez por todas, propôs, então, ao Pequeno, que morava no condomínio da esquina e tinha um salão de festas imenso, que promovessem uma festinha americana, com direito a globo de espelhos alugado e um potão de ponche alcoólico (escondido dos pais, lógico).O Pequeno, claro, aceitou, afinal era a oportunidade que ele esperava para ficar mais conhecido na vila, e até, quem sabe, descolar o primeiro beijo. Ligou para o pai e tudo foi esquematizado: sábado seguinte, no salão de festas do condomínio do Pequeno, festa americana a partir das 19h. Meninas levam comidas e meninos levam refrigerantes.

Globo de espelhos alugado e posicionado, ponche alcoólico devidamente "mocado" (feito pelo irmão do Chaliça, mais velho e gente finíssima) e o som com entradas para iPod num canto, a festa estava pronta para começar. Garrafa escolheu sua melhor roupa, com o lustroso sapato de ir à missa nos pés e um lenço vermelho estrategicamente posicionado no bolso da camisa. Entre papos e goles, as meninas começavam a chegar e a se juntar em grupinhos. Não se misturavam, meninos e meninas. Várias rodinhas no salão, eles batendo os pés no ritmo da música e com um copo na mão, elas cantando e dançando o Créu até o chão.

De repente, Garrafa viu Marcinha. Morena, com os cabelos bem lisos caindo suavemente até o meio das costas, era uma das poucas ali que já tinha feito 13. Parecia desconfortável, no canto, de braços cruzados e olhando para o chão. Assustou-se com a chegada repentina do rapaz lhe oferecendo uma dança. "Mas está tocando funk", ela disse. Ele a puxou para a pista e lhe disse no ouvido que já estava tudo preparado. Não tinha idéia de como tinha conseguido fazer aquilo – ir até a menina, falar com a menina e, acima de tudo, tirá-la para dançar –, mas, quando se deu conta, já estavam abraçados ao som de Fugees, que Borbolla colocou quando alcançaram o centro da pista, conforme fora combinado.

Garrafa sentia que Marcinha tremia. Ela, por sua vez, sentia a mão dele suando nas costas. Não ousaram se aproximar e muito menos conversar. Estavam sozinhos na pista, afastados quase um palmo um do outro e balançando para lá e para cá, totalmente fora do ritmo. Quando Borbolla apagou a luz, alguns outros casais se juntaram à dança: Cesinha do prédio verde e a Sônia, filha da Terezinha; Tadeu Capixaba com a Bianca; Xerife, filho do Major Marcelo, da polícia militar, com a Telminha do colégio São Francisco; e finalmente Borbolla e Ingrid, que no clubinho é chamada de Greca. Mas para Garrafa não havia mais ninguém, aquele momento era só dele; só havia luz sobre ele e Marcinha, e tudo o resto eram somente nuvens.

Ia aos poucos tentando uma aproximação. Quem o impedia de chegar mais perto não era Marcinha, e sim seu coração, que batia tão forte que teve medo de se encostar e ela se assustar. Torcia para que a música não acabasse mais: o Ipod que estava tocando era do Marco, o que dava grandes chances de a próxima canção ser um rock progressivo e isso quebraria todo o clima. Precisava agir rápido, pensar no que falar e no que fazer. Imaginava se ela o beijaria ali na frente de todo mundo ou se gostaria de ir até o jardim, esconder-se. Formulava mentalmente frases de efeito para usar de acordo com as respostas de Marcinha. Quando finalmente ia falar alguma coisa, a música parou.

Os cinco segundos entre uma canção e outra pareceram eternos. Ambos soltaram as mãos, mas não saíram da pista e nem de perto. Ao primeiro acorde da próxima faixa, porém, ela disse quase engasgada "vou ao banheiro" e virou sem olhar mais para trás. Com ela – coincidência ou não – foram todas as meninas que dançavam. A pista ficou com Garrafa, Cesinha, Tadeu Capixaba, Xerife e Borbolla se olhando e sem ação. Não sabiam se deviam conversar ou tomar alguma coisa ou dar uma volta ou até ir ao banheiro. Ficaram todos parados, na mesma posição, durante alguns segundos. Então Borbolla virou as costas e foi até o ponche; Cesinha e Xerife se cumprimentaram e saíram em direção ao som; Tadeu Capixaba olhou para o banheiro e andou, mas acabou sentando numa cadeira pelo caminho. Só ficou Garrafa na pista, sozinho e ainda sem se mexer.

Marcinha saiu do banheiro já quase no final da música. Viu Garrafa ainda sozinho no meio do salão e baixou a cabeça. Ele andou em sua direção; ela sabia, mas fingiu não perceber. Finalmente, quando se encontraram, ele perguntou se ela queria sair no jardim, olhar as estrelas. Já tinha tudo programado. Lá fora diria que "a lua só não é mais bonita que seus olhos" e que "todas as estrelas do céu juntas não embelezam mais a noite do que você", para depois finalmente beijá-la. Já do lado de fora, seu coração parecia na boca e as mãos tremiam. Ele até pensou em pegar na mão de Marcinha, mas quando criou coragem já estavam sentados no gira-gira.

Postaram-se um de frente para o outro. Ele pensava "tenho que falar, tem que falar agora", e ela fitava-o nos olhos pela primeira vez. Garrafa tinha a testa molhada de ansiedade; imaginou aquele momento durante a semana toda. Deslizou a mão pelo assento até seus dedos encontrarem os dela. Marcinha não se esquivou, bom sinal. Entrelaçaram as mãos, ainda sem falar nada. Ela mexia nos cabelos, ele olhava para os lados, nervoso. Ela olhava para baixo, mordia os lábios; ele pôs a mão no joelho dela. Quando do salão surgiu a música de Bryan McNight, Garrafa e Marcinha se beijaram. Não foi preciso falar nada nem mandar flores nem convidar para jantar. E também não foi a música que criou a vontade repentina. Eles desde o começo sabiam que aquilo ia acontecer. Nada acontece mais naturalmente do que beijos entre pré-adolescentes.

2 comentários:

Anônimo disse...

FUGINDO DE CASA
Alguém já viu algum time abandonar o jogo em seu próprio campo? Acho que não. Parece que só se conhece uma caso desses em toda a história do futebol. Foi em 1945, na rodada final do Campeonato Carioca. O Vasco estava invicto e só tinha pela frente o Flamengo, no campo dele, na Gávea, que fora inaugurado com uma vitória vascaína em 1938. Pois é, era ponto de honra para os flamenguistas tirar a invencibilidade do time vascaíno, que já era campeão antecipado. O time urubunegro começou com tudo. Fez 2 X 0 no primeiro tempo e começou a gozar os vascaínos, que tinham ido ao mais feio cimento armado do mundo ver aquele jogo. Porém, veio o segundo tempo e o time do Vasco começou a dominar a partida e não demorou muito a empatar. Sentindo que a virada era inevitável, os burro-negros começaram a reclamar de tudo e saíram de campo. Do seu próprio campo. Fugiram em seu próprio campo para escapar da virada. Podiam ter continuado e tentado tirar a invencibilidade do Vasco. Ficaram com medo de perder e não tentaram. Fugiram mesmo. A partida foi concluída dias depois nas Laranjeiras, mas o resultado de 2 X 2 foi mantido. Moral da estória: Vasco da Gama Campeão Invicto de 1945 em cima do MICO DE ABANDONAR O SEU PRÓPRIO CAMPO PARA NÃO PERDER DO VISITANTE.

Unknown disse...

es.tó.ria; substantivo feminino

1. História, no sentido de narrativa ficcional.