Imagine-se num distante país qualquer. De preferência num desses que "não existem", tal como Ossétia do Sul, Abecásia ou a República do Palau (são tão longínquos e desimportantes que nem o word os reconhece). Você, por algum motivo que não merece explicações, está representando o Brasil numa visita oficial. E o Brasil, por incrível que pareça, acaba de ajudar o referido país a conseguir a tão desejada independência sobre os imperialistas do Turcomenistão. Resumindo: você está sendo tratado como rei.
Entre um aperto de mão e outro, a fome começa a apertar. Você olha no relógio e ainda faltam pelo menos duas horas para a próxima refeição. As perspectivas não são boas: a fila para abençoar os fiéis (sim, criaram uma igreja evangélica dizimista onde você é deus) some da vista, descendo o serrote até pelo menos a cidade baixa; todas as duas emissoras de TV locais e as três de rádio querem lhe fazer entrevistas exclusivas; e, finalmente, a assessoria do Imperador do paisinho (diminutivo de país) foi lhe informar que o almoço seria servido somente dentro de longuíssimas três horas.
Em três horas sua fome será de refugiado de guerra, de recém-nascido abandonado pela mãe no matagal do Jardim Botânico. O estado será tão crítico que você verá imensos T-bones suculentos e flutuantes ao invés das vacas e cachorros que circulam pelas ruas. Mas uma coisa o acalma: o almoço certamente será digno de príncipe etíope, com tudo o que de melhor o país tem a oferecer e – o mais importante – em fartura. Muita fartura.
Mesa posta, você se vê em meio a todas as autoridades locais – alguns em formato de coxa de galinha, devido ao avançar do instinto. As bandejas começas a entrar e o estômago arde, de tanta fome. Você fecha os olhos e sente o aroma... Finalmente comerá, depois de infindáveis horas de abraços, autógrafos e entrevistas. Enquanto o Imperador e o Ministro de Guerra fazem seus discursos, seu pensamento é apenas no que virá debaixo daquelas lustrosas tampas. Imagina uma grande panela de arroz, uma bandeja repleta de picanhas malpassadas fatiadas, um pote de farofa de milho temperada e uma cumbuca de feijão abarrotada de bacon e paio.
Dada a ordem, os serviçais avançam até as bandejas e puxam-lhes as tampas. À primeira vista, seus desejos se realizaram: você vê o arroz, o feijão, a picanha e a farofa. Mas é apenas uma miragem. Forçando a vista para enxergar a realidade, vê um singelo coelhinho com uma maçã na boca, que os criados anunciam como "Lebre Virgem ao Molho de Ostras". Um pouco mais ao lado, uma mistura verde e grossa que expele gosmentas bolhas de ar é anunciada como "Molho Típico de Ervas Grossas". E antes que você pudesse pedir licença para vomitar, um jovem serviçal sobe numa cadeira e anuncia, a plenos pulmões, o que diz ser a especialidade do país: "Filhote de Gambá à Milanesa". A multidão à mesa vai ao delírio; você, finalmente, desmaia.
Um vício nunca é saciado com novidades e invencionices. E convenhamos que comer, pelo menos num estado de fome terminal, é um vício físico e psicológico, muito mais atormentador do que a abstinência de cocaína ou de video game. Esse seria um caso em que você chegaria num restaurante qualquer e pediria o famoso PF, que NUNCA varia da combinação arroz, feijão, macarrão, salada e carne à escolher. Na hora da fome, nada é melhor do que isso. Não me venha com água-viva cozida, canário-da-terra assado ou anta grelhada: o que eu quero é sustança.
(Graças ao Lucas Mário)
Um comentário:
Lindo!
Captou a mensagem, mesmo se embriagando no momento da transferência de pensamento!
Não lembro o momento certo, mas certamente estávamos nos embriagando!
Postar um comentário