terça-feira, 5 de agosto de 2008

Deixa o homem relaxar

Jon estava deitado no tapete da sala com os olhos semicerrados, como quem busca enxergar mais longe no horizonte. Não pensava em nada. Saindo do trabalho, elegera aquele momento para esvaziar a mente, para livrar seus pensamentos de toda maldade que havia lhe acompanhado a semana inteira. Estava tudo escuro, as cortinas fechadas, a luz apagada. De som, somente a televisão do vizinho de cima que assistia à novela das oito. Mas nem isso desconcentrava Jon.

Estava cansado. Tinha sido uma semana duríssima aquela. Jon sofrera todo tipo de pressão no trabalho e tudo o que queria naquela hora era dormir. Dormir sossegado, de preferência sem sonhar. Planejou acordar somente dali a 13 ou 14 horas, sem mais nenhuma maldade na cabeça ou qualquer espécie de aflição. Chegara na sexta-feira com o sentimento de vingança lhe torturando a cabeça. Queria porque queria açoitar alguém, quem quer que fosse e com os piores instrumentos. Qualquer coisa de satânico, até.

De repente Jon ouve um barulho se aproximando pelo corredor do prédio. Era alguém que provavelmente subiu todos os 14 andares até sua porta de escada – e correndo. Ouvia-se uma respiração ofegante, ao mesmo tempo forte e ritmada. Dir-se-ia que era alguém que jamais havia praticado qualquer esporte antes, ou até um velho tendo uma espécie de ataque de asma. Do nada a pessoa toca a campainha. "Pééé!" E prontamente Jon pensou: "a esta hora, sem avisar nem ser anunciado pelo porteiro, só pode ser o Ted". Jon sabia que Ted não era pródigo em educação. Além disso o considerava sinônimo de confusão.

Antes de se levantar, lembrou-se da última vez que estiveram juntos. Faria três meses no dia seguinte, e desde então os dois não se falavam. Era um sábado, e sabe-se lá como Jon foi convencido por Ted a sair e tomar cerveja por aí. Foram a um boteco próximo da catedral com uma turma da academia do Ted. Muitas cervejas depois, Ted falou em alto e bom tom:

- Meu amigo aqui é campeão sul-brasileiro de queda de braço. Quero ver alguém derrotar ele.

Jon suou frio. Nunca havia disputado qualquer campeonato de queda de braço na vida, nem nos churrascos onde seus tios completamente bêbados o desafiavam a fim de comprovar sua masculinidade. De repente se viu frente a frente com quatro brutamontes sedentos por vencê-lo numa disputa provavelmente sangrenta. Sem pensar direito, olhou bem para seus dois braços raquíticos, deu um potente soco na mesa e gritou:

- Aaai!

Tinha acabado de quebrar seus dois dedos mínimos.

Culpou Ted por aquela babaquice e foi embora. Como se não bastasse, ao voltar para o carro encontrou uma multa no pára-brisas: estacionamento em local proibido. Fora Ted quem o convenceu que não tinha perigo nenhum parar sobre a calçada.

Até o ocorrido, Jon considerava Ted no máximo como um mero colega. Um colega folgado, diga-se de passagem. Depois de ter dois dedos quebrados e menos cinco pontos na carteira de motorista, rebaixou-o a quase-inimigo. E isso, na concepção de Jon, era motivo para ignorá-lo publicamente  num eventual encontro no shopping (Jon nunca foi violento). Lembrando-se de que era Ted batendo à porta, pensou: "quem esse desgraçado pensa que é para tocar minha campainha a essa hora sem nem avisar que vinha?" Não que Jon abriria se Ted o tivesse avisado, mas aquele foi o único pensamento que lhe ocorreu na hora.

Levantou-se em silêncio, imaginando o que falaria se decidisse abrir a porta. Lá fora o visitante já havia desistido da campainha e começado a bater na porta. Socar a porta, aliás. Isso irritou profundamente Jon. Aí ele parou e pensou: se abrisse a porta, seria capaz de falar algumas besteiras para Ted – ou até cometer uma atrocidade, afinal estava com a ira ainda presa no corpo. Não gostava mais de Ted, é verdade, porém não o queria vê-lo morto (e seria mesmo capaz de fazer isso se ele batesse mais uma vez na porta daquele jeito). Decidiu virar as costas e ir para o quarto. Com a porta fechada e o telefone fora do gancho dormiria como um anjo, conforme planejado.

E foi o que fez. Jon se deitou como estava, sem nem tirar o sapato, e só acordou no dia seguinte com o sol a pino. Não pensava mais na semana que havia passado nem nos seus planos diabólicos de torturar o próprio chefe. Esquecera-se até do maldito Ted, que quase atrapalhou seu momento especial de meditação e busca pela paz. Teve pena do garoto, inclusive. Cogitou telefonar-lhe para saber o que queria, mas desistiu a tempo. Escovou os dentes, tomou um banho e resolveu, para comemorar, tomar café da manhã na panificadora da rua de baixo – a melhor da região.

Ao sair de casa, a surpresa: na frente da sua porta tinha um velho de joelhos, parecendo um muçulmano rezando na direção de Meca, com as duas mãos como que escorrendo pelo trinco. Morto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Por um certo momento achei que o Jon era vc, e o Ted era o Setubal ! hahahahaha