terça-feira, 27 de março de 2007

Dire Straits

Eram cinco horas da tarde e Miltinho fazia a última entrega do dia. Cem quilos de farinha, coisa simples, corriqueira, só que do outro lado da cidade. Uma quinta-feira, véspera de feriado, calor e trânsito inesperadamente infernais: deveras um dia estressante.
Miltinho já havia discutido com o chefe por tê-lo colocado numa rota muito longa; com um motoqueiro, por quase levar seu retrovisor; e até com uma velhinha que custava a atravessar a rua. Ele já não via a hora daquele dia acabar.
Eis que surge um sinaleiro. Apenas mais um naquela rua aparentemente infinita. Miltinho pára e fica quieto, com cara de quem já não agüenta nem mais reclamar. Arruma o cabelo, enxuga o rosto e olha em volta. Nem acredita.
O destino, sempre ele, colocou a sua direita tinha uma loura, daquelas espetaculares, num Fiesta azul, cantarolando e batucando uma singela canção. Não se ouvia a música por a janela estar fechada – provavelmente por causa do ar condicionado, sortuda –, mas aquele batuque, um tum-tum-pá, tum-tum-pá na parte de baixo do volante, seguido de uma virada e dois tapinhas no console central, não deixava dúvidas: ela ouvia Dire Straits.
Mas, oh!, que maravilha. Uma loura quase escandinava, fabulosa, ali do lado, cantando Dire Straits, absorvida em seu momento. Miltinho estava apaixonado. De várias formas tentou chamar a atenção da moça. Gritou, buzinou, acenou, enfim, só faltou sair do carro e bater no vidro dela. Nada.
O sinaleiro abriu – agora era o "maldito sinal" – e Miltinho ficou pra trás. Ela arrancou primeiro e só deu tempo de ver o adesivo colado na traseira do Fiesta:  "Ciências Ocultas – FACCUL".

A Caçada
Não era muita coisa, mas já tinha uma pista. Estudava na FACCUL, as Faculdades Avançadas das Ciências Ocultas (um erro de ortografia permitiu o uso do trocadilho), no curso mais concorrido do Câmpus. Mas agora precisava ir até lá para encontrá-la. Mas o que poderia ser entregue num lugar como aquele? Decidiu mudar para o setor de entregas gerais.
Era o setor mais sinistro da empresa. Na primeira semana, Miltinho já tinha entregado desde aqueles cabos em espiral para telefones até fraldas geriátricas a macacos velhos. Quis o destino, sempre ele, que um dia um carregamento de galinhas pretas chegasse até o pátio da empresa. Para sem entregue na FACCUL, que ironia. Miltinho se ofereceu para fazer o serviço. Era sua chance.
Nesse dia todos se espantaram com o capricho de Miltinho. Botou uma camisa florida nas cores da empresa, passou brilhantina nos cabelos e até comprou um sapato novo com o Garcia, o baiano que trazia produtos importados do "exterior". Ia, afinal, encontrar-se com Maria – nome que inventou para sustentar a mentira de que já tinha conversado com a "menina do Fiesta".
No Câmpus da FACCUL, Miltinho não teve trabalho. Os alunos se estapeavam na porta da van atrás do melhor exemplar de galinha preta que poderiam conseguir. Era o que nosso herói precisava. Com isso ganhou tempo para ir atrás de seu amor.
Partiu em busca de Maria como um rato atrás de queijo. Os alunos estavam apressados naquele dia, mal dava tempo de olhar-lhes nos olhos. Mas eis que de repente o destino, sempre ele, colocou Miltinho e Maria frente a frente, num esbarrão. Na hora de pedir desculpas, ele balbuciou algo como "caixa de papelão". Estava nervoso.
"O que eu vou falar pra ela agora, cacilda?", pensou. Nervosamente, tentou uma conversa:
– Oi-você-não-é-a-loira-que-tem-um-fiesta-azul-e-escuta-dire- straits-muito-prazer-Miltinho. – Falou, de uma vez só.
Ela, claro, não entendeu nada, mas foi muito gentil:
– Calma moço. Não entendi nada. Porque você não toma esta água?
– Caixa de papelão!, quer dizer, obrigado.
De um gole só, Miltinho acabou com a garrafa da menina. Pelo menos se acalmou:
– Oi. Então, olha só. Eu te vi, quinta-feira, antes do feriado, na rua Germânia, na frente do Walter's .
– Ah sim. Eu sempre passo por lá. Mas você me viu e daí?
– Ah, então, você escutava, e cantava, e batucava, uma música. Eu adoro. Só penso em você, desde então. Pensei que, sei lá, se você, talvez, não queria sair, no Walter's mesmo, pode ser, comigo, e tomar um suco, ou uma cerveja. Sei lá.
– Hum, você é engraçado. Acho que pode ser uma boa. Que tal hoje à noite?
– Fechado.
– As oito?
– As oito.
E lá foi Miltinho, distraído, assobiando Dire Straits, de volta para a empresa.

O Namoro
As oito em ponto estava Miltinho esperando na frente do Walter's, brilhantina no cabelo, camisa de gola rulê, e sapato novo. Nem sinal de Maria – "oh, esqueci de perguntar o nome dela". 8h05 e nada. Ainda não se configurava atraso, mas Miltinho começou a se preocupar. "Será que ela não vem? Acho que fui enganado, afinal nem combinamos direito. Como fui burro! Ah, vida ingrata".
Quando o relógio da torre em frente marcava 8h16, Miltinho resolveu entrar no bar. Sozinho, cabisbaixo, nem se importou de pagar o dez reais de entrada. Eis que, quando entra, o destino, sempre ele, prega outra peça em Miltinho. Lá estava ela, linda e loura, sentada no balcão, tomando alguma coisa, e procurando as horas no celular. De súbito ele recupera o ânimo, levanta os ombros e vai lhe falar:
– Oi.
Ela, com a cara de quem achou água em pedra no meio do deserto, quase gritou:
– Oi!...
– ...Miltinho...
– ...Miltinho! Achei que você não vinha.
– Pois é. Eu estava te esperando ali na frente. Também achei que você não vinha.
– Puxa vida, que mal entendido. Senta, puxa uma cadeira. Quer uma gin-tônica? Prazer, Lúcia.
Lúcia. Ela agora tinha um nome. Um nome e um sorriso por tê-lo visto. Parecia nervosa e tomava uma gin-tônica.
– Não, obrigado. – respondeu secamente.
Sentou e pediu um conhaque. Tinha agora o controle da situação, afinal era ela quem estava nervosa. "Não se pode confiar em quem toma gin-tônica", pensava ele. Mas, enfim, ninguém é perfeito e ele cedeu o fato da gin-tônica. Engataram uma conversa por cerca de dez minutos. Afim de começar um novo assunto, Miltinho começou a falar do dia em que a viu no carro cantarolando:
– E você fazia tum-tum-pá, tum-tum-pá assim no volante. Depois tinha uma virada e dois tapinhas no console central. Era lindo!
– Ah sim, eu lembro! Mas não era uma virada, era uma pausa. Eu tenho mania de fazer aquele movimento assim quando tem uma pausa.
–  Uma pausa? Então você estava fazendo errado. Naquela hora é uma virada.
– Ora, claro que não. É uma pausa, eu tenho certeza.
– Como? Eu escuto Walk of Life desde criancinha. Tenho certeza que é uma virada.
–  Walk of Life? Do Dire Straits? Ui, eu odeio Dire Straits! Eu estava ouvindo Love Leads To Madness, do Nazareth.
Então Miltinho se levantou e jogou os quatro reais do conhaque sobre a mesa. Saiu sem falar nada. Toma gin-tônica vá lá. Mas não gostar de Dire Straits era demais.

Um comentário:

Anônimo disse...

hehehehe...sem dúvidas foi uma blasfêmia da parte dela em dizer que odiava Dire Straits!