quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Suicidio

Outro dia tomei a decisão mais radical da minha vida: me matar.

Tudo começou num domingo qualquer. Acordei e não conseguia nem abrir os olhos; a cabeça doía tanto que parecia ter uma bateria do Olodum alojada dentro do meu cérebro. As batucadas eram desordenadas e intensas feito ensaio no Pelourinho, e atingiam principalmente os lados e a frente do crânio. Seguiam no ritmo do coração, que por sua vez já começava a dar sinais de que não suportaria um dia inteiro trabalhando naquela pressão. Eu sentia os dedos das mão tremerem com a força da pulsação. O sangue parecia estar grosso e pesado como calda de chocolate. A essa hora, 20 segundos depois de acordar, eu já tinha entrado em pânico.

Tentei articular algumas palavras para reclamar da vida; não deu. A língua estava grudada no céu da boca, os dentes amarrados como se eu mordesse uma bala de caramelo. Senti como se tivesse passado a noite comendo um novelo de lã. Quando a língua finalmente se desprendeu, senti literalmente o gosto amargo da derrota. Parece que aquela mistura ar com boca e com ressaca provoca reações químicas únicas que criam o pior aroma possível de ser produzido por um ser humano. Senti nojo, asco de mim próprio.

Levantei, com muito custo, e fui até o banheiro. Ainda tinha os olhos fechados quando abri a torneira, lavei as mãos e joguei água no rosto. Foi como se Deus, o Pai todo-poderoso, tivesse me dado um tapa e dito "toma!", tal qual um Capo da máfia italiana faz no filho quando este vai preso. Senti meu mundo girar, e definitivamente não era o efeito da bebida. Sentei-me na privada de frente para o espelho e, encarando meus próprios olhos, pus-me a pensar. Eu olhava em volta absorto, perdido, aturdido. Nunca tinha me ocorrido uma crise existencial como aquela. Minhas perguntas iam além da clássica "qual o sentido da vida". Eu queria saber mais. Queria saber o porquê das coisas. Queria saber como tudo tinha chegado àquele ponto.

Foi tudo culpa do gin, concluí. Sabe-se que a bebida que o cara toma molda-lhe o caráter, e o gin é a pior delas. O da cerveja é sempre o falastrão; o que toma whisky, o das tiradas inteligentes; vinho, romântico; conhaque, introspectivo. Mas com o gin não se tem uma definição precisa. Quem bebe gin se sente seguro sempre, em qualquer situação, porém não sai por aí se gabando. O bebedor de gin é aquele cara que está sempre quieto, mas quando é exigido tem a resposta na ponta da língua. Não faz piadas e não ri das piadas, só que nem por isso é esquecido pela turma. O bebedor de gin é importante nos momentos de filosofia. Ele é o sábio, o "professor". E eu era o bebedor de gin da minha turma.

Certamente naquela manhã eu ainda estava sob os efeitos do gin. Tive um momento de reflexão que talvez jamais tivesse numa situação normal. Pensei "puxa, sou um cara de quase 50 anos, solteirão, com um bom emprego, uma boa casa, o carro do ano... Mas e daí?" Eu queria descobrir para quê tudo aquilo estava na minha vida. Quando eu morresse, oras, tudo iria para o lixo. Todos os meus anos de faculdade, pós-graduação, mestrado e tudo mais iam parar a sete palmos abaixo do chão, como se nunca tivessem existido. Todos os meus romances, minhas viagens, meus gols pelo campeonato do clube: pó, tudo pó. Abri a gaveta e peguei minha pistola.

Ah, a boa e velha Taurus. Nunca me decepcionou. Sempre esteve a postos quando precisei dela. Cabo cromado, semi-automática; a melhor da categoria. Bastava uma bala entre os olhos para resolver ali mesmo, no banheiro, aquela dúvida que me atormentava. Tudo ia acabar como começou: no escuro. Apagar-se-iam luzes, sol, estrelas, pessoas, carros, prédio, contas, TV, minhas garrafas de gin. Tudo. Eu ia para sempre viver no breu, sem precisar pensar em mais nada. Serviria apenas de comida para os vermes subterrâneos, e esta era minha eternidade. Um tiro e puf! Acabou, it's over, fine! Recuperaria, finalmente, a minha inexistência de volta.

Pus a arma na frente dos olhos; queria ter como última visão a bala saindo do cano, por mais que nunca mais fosse me lembrar daquilo. Não preparei nada, não avisei ninguém, não troquei de roupa, nada. Nem carta de despedida fiz. Aliás, sequer saí do banheiro naquela manhã. Apenas me certifiquei de que a bala atingiria bem no meio do hipotálamo e me causaria uma indolor e instantânea morte cerebral. Respirei fundo e percebi que estava menos nervoso do que imaginei que ficaria. Talvez a consciência de que estaria livrando o mundo de um fardo me acalmou. Então puxei o gatilho. Não, não vi a bala sair. Não deu tempo. Num instante ela estava na arma, no outro, devidamente alojada bem no centro do meu crânio. O rosto devia estar esfacelado e o sangue jorrando pelo banheiro inteiro, mas não tive tempo de conferir. Ao contrário do que imaginei, tudo ficou branco como sala de hospital. E eu definitivamente não estava no hospital.

Morri, sim, mas, apesar da minha torcido, não acabou. Esta é a maior frustração de um suicida: morrer e continuar naquela existência castigante. Quando tive coragem de reabrir os olhos vi dezenas, centenas de outras pessoas ao meu redor e pensei "meu deus, onde será que eu estou?". Ele mesmo me respondeu: "no céu, meu filho. No céu". Uau! No céu, e logo eu... Ó tamanha desgraça. Queria ser desligado, apagar, off; e não estar no céu, ouvindo harpas e observando anjos sem sexo. Só que foi isso o que aconteceu. Agora estou aqui, numa imensidão branca, cercado de pessoas exatamente iguais àquelas que eu já tinha conhecido. E, como se não bastasse, divulgando esta minha história através de um escritorzinho barato.

Bem, foi o único cérebro que consegui penetrar – o do João Ubaldo já estava devidamente ocupado.

2 comentários:

Guylherme Custódio disse...

Podia ser pior...se fosse pro inferno tinha penetrado na mente do Ozzy..ou do Zé do caixão,ou pior ainda...no Inri Cristo!!

Anônimo disse...

Este só nun foi pro céu... certeza