quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Invasão

“Eu vou até aí e te pego, seu desgraçado”, Júlio gritava de um lado da cerca. “Você não é páreo para um judoca faixa-cinza como eu. Acabo com você num segundo, com uma das mãos amarrada nas costas”. Do outro lado, protegido por quase dois metros de arame farpado e um casal de pastores alemães, Lauter não respondia. Coçava sua barriga flácida num quê de desprezo e ironia.

A discussão começou por causa de uma bola de futebol que caíra em seu quintal. Júlio jogava com a sua turma, os caras da rua de baixo, no campinho ao lado da praça. Lá, como se sabe, é área dos caras da rua de cima, e a interação entre as duas turmas há muito tempo era considerada impossível por ambas as partes. Os invasores chegaram de repente, antes da aula acabar (sabe-se lá como todos os caras da rua de baixo conseguiram sair da escola antes do sinal tocar), e dominaram o campinho na base da ocupação estilo sem-terra.

Jogaram por mais de uma hora antes do incidente. Os caras da rua de cima, os donos do campinho, apenas observaram, de longe, a movimentação. Não podiam reivindicar a posse, não naquele momento. Estavam em menor número porque a turma da quinta série da escola da vila estava numa excursão em Ponta Grossa, e mais da metade dos caras da rua de cima eram da quinta série. Além disso, todos ali eram mais novos. Só não haviam perdido definitivamente o “mando” de campo até então porque o pai de um deles, o Seu Pedro, era uma espécie de síndico do bairro. Todos na região o respeitavam. “Se o Seu Pedro falou, tá falado”, diziam. E ele falou, certa vez, que o campinho ao lado da praça era dos caras da rua cima – os outros disseram simplesmente amém. Só em casos esporádicos, quando aconteciam campeonatos ou invasões como esta, que os caras da rua de baixo jogavam no campinho ao lado da praça.

“Vocês não deveriam estar aqui”, Lauter sibilou calmamente para o nervoso Júlio. O outro respondeu:

“É, mas agora nós já estamos, e quero ver alguém nos tirar daqui”.

“Eu posso falar com o Tio Pedro e ele tira vocês em dois segundos”, respondeu Lauter, agora sentado sobre um tronco, alisando a bola do adversário que jazia em seu quintal.

Júlio estremeceu. Sabia que Seu Pedro podia tirar ele e seus amigos dali a qualquer momento. Se não o fizesse pela força, algo improvável em se considerando o Seu Pedro, o faria falando com seus respectivos pais. Júlio e seus amigos teriam o jogo interrompido, perderiam a bola que haviam acabado de comprar e ainda levariam uma bela bronca ao chegar em casa – a ordem para que eles jamais fossem jogar no campinho ao lado da praça era explícita. Pôs-se, então, na defensiva:

“Não precisa exagerar, Lauter. Devolve a bola que a gente vai embora”.

Lauter coçou a cabeça, pensativo. Olhou para baixo e para os lados, como que procurando uma resposta. Nisso os outros caras da rua de baixo foram chegando, preocupados com a demora do pereba Júlio, que fazia quase dez minutos que tinha ido buscar a bola que chutara por cima do alambrado. Chegou um, chegou outro, e foram logo se postando ao lado e atrás de Júlio, numa formação quase que hierárquica.

“Devolve nossa bola, Lauter”, repetiu Júlio, meio resignado, com seu olhar de peixe morto. “Se você nos der ela agora a gente promete que vamos embora. Vamos jogar no nosso campinho, mesmo ele ficando a cinco quadras daqui”.

O pequeno Lauter (era minúsculo comparado aos caras da rua de cima), que brincava de pegar com um dos cachorros enquanto ouvia o apelo, estacou. Sentiu um misto de compaixão e pena dos adversários da outra rua. “Cinco quadras é realmente muito longe”, pensou. Fez mentalmente a conta de quanto tinha que andar quando precisava comprar agulhas para a avó, lá na avenida. Quatro quadras e pouco, e já achava uma eternidade.

“Vocês têm mesmo que andar seis quadras até chegar no seu campinho?”, perguntou, sem olhar para os outros.

Eles se entreolharam. Nunca tinham realmente contado, mas era praticamente consenso que andavam pelo menos cinco quadras até o seu campinho. O do lado da praça ficava a apenas uma rua da casa deles, e mesmo a ladeira que precisavam subir era menos desencorajadora que as cinco supostas quadras até o outro. Um deles, o mais tímido, que estava escondido atrás da galera, falou por detrás das lentes fundo de garrafa, numa voz quase inaudível:

“Uma vez eu contei... Dá oito quadras daqui até lá, mas aquela onde fica o armazém tem o dobro do tamanho das outras”.

Lauter fechou os olhos e suspirou. Oito quadras. Era o que precisava andar para chegar até a casa da Tia Paula, irmã da sua mãe. Adorava ir até lá, mas quando o pai não estava em casa e tinham de ir à pé pensava em desistir. Só os bolinhos de chuva que a tia fazia conseguiam convencê-lo de sair de casa e camelar um sem-fim de ruas até aquilo que seu irmão Beto chamava de “casa dos doces”. Já os caras da rua de baixo tinham que andar essa distância todos os dias só para jogar bola. Nem uma bomba de chocolate sequer os esperava no destino. Refletiu por um tempo olhando fixamente para cada olhar sombrio que os inimigos lhe lançavam para então dizer:

“Querem saber do quê mais? Se o Seu Pedro falou, tá falado. Vão jogar no campo de vocês, fique ele onde ficar”. E então chutou a bola dos caras da rua de baixo o mais forte que pôde para o alto. Todos acompanhavam com os olhos enquanto ela subia. Um deixou escapar um grito, meio de raiva, meio de desespero. Parece ter calculado o trajeto da bola com ela ainda no ar: quando a viagem terminou, ela caprichosamente caiu sobre uma cerca viva abarrotada de espinhos.

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