Tinha um garoto lá na rua onde eu cresci que adorava se dar bem em tudo. Bem, tá certo que todo mundo adora, mas ele era demais. Ele era capaz de fingir ser o melhor amigo do craque da rua só para ficar no time mais forte das peladas vespertinas. Para se ter uma idéia, quem jogava bulica contra ele não podia vacilar por um segundo que a bolinha sumia para jamais reaparecer. Anos depois ele contou que o seu kichute tinha um estratégico furo propositalmente feito na sola onde cabia apenas uma bolinha de gude, e nada além disso.
Falando assim dá a impressão de que esse meu amigo era o verdadeiro malandro, mas não. Devo alertar que ele não era um malandro qualquer. Tinha um grau de malandragem em tal nível que o diferenciava dos outros malandros. Sim, porque ser malandro demais às vezes atrapalha. Ele era malandro o suficiente para ser chamado apenas de esperto, e não de malandro completo. Desde pequeno ele tinha a sapiência de usar sua malandragem apenas nos momentos em que aquilo lhe favoreceria e, principalmente, onde a malandragem não tinha como ser descoberta. E mesmo que fosse, que não pudesse ser usada contra ele.
Como todo mundo, malandro ou não, meu amigo cresceu. E foi na adolescência que criou uma técnica de malandragem infalível: não contar nada para ninguém. E olha que quando eu falo ninguém, é ninguém ninguém mesmo. Ele não tinha confidente, não se abria com o pai e não se confessava com o padre. Tudo o que fazia, guardava para si. Pegava todas as menininhas, comprometidas ou não, e não saía por aí se gabando. Aos 15 já ganhava seu próprio dinheiro – lícito – e ninguém sabia como. Só descobriram que ele aprendera a tocar violão quando teve um concurso de talentos na escola onde ele, como todo bom malandro, fez de tudo para ganhar.
E assim os anos foram se passando. A galera crescendo e ele lá, cada vez mais querido por todos mas com um monte de interrogações acerca da sua vida. Ninguém sabia, por exemplo, o que ele estava fazendo quando sumia ao entardecer de toda segunda-feira – nem a sua mãe. Então, como não poderia deixar de ser, iniciaram-se as especulações: "fulano está se drogando", "está se prostituindo", "vi fulano comprando crack no pé do morro outro dia". Da noite para o dia resolveram que era preciso interná-lo numa clínica de reabilitação. Não restava mais dúvidas. Alguém que some sistematicamente sem que ninguém saiba para onde ele vai, só pode estar usando drogas.
O rapaz, claro, se revoltou. No dia em que os "doutores" da clínica foram buscá-lo, dava para ouvir seus gritos a pelo menos duas quadras de distância. Só que a birra durou pouco. Malandro que era, deixou-se levar manso como um leão sedado de morfina. Não devia nada a ninguém, não tinha matado nem cachorro a grito e, acima de tudo, não usava drogas. Ficaria na tal clínica só durante o tempo que precisariam para constatar que ele estava "limpo", fosse isso um dia ou um mês. Pegou alguns livros, uma trouxinha de roupa, seu violão e foi. Andou até o camburão sem precisar ser empurrado e, ao entrar, lançou um olhar à vila que misturava desapontamento e tristeza. Alguns ali nunca mais tornariam a vê-lo.
O resto da história é meio obscuro. Depois daquele dia, ninguém mais na vila tinha notícias comprovadas sobre seu paradeiro. Uma de suas namoradinhas, a Aninha da rua de baixo, foi até a clínica após uns dias para tentar descobrir o que havia acontecido. Voltou dizendo que os médicos o liberaram dois dias depois de o terem levado por não constatarem qualquer resquício de droga no seu sangue. Reza a lenda que ele aproveitou que tinha umas mudas de roupa na mochila e se mudou para o Rio de Janeiro. Ele, o malandro, e seus únicos confidentes: uma dúzia de livros e um violão.
Por que escrevi isso? Sei não, acho que ando vendo coisas. Alucinações, quem sabe. É que outro dia estava zapeando os canais da minha televisão – o que é muito raro porque odeio essa mídia burra – e tive a impressão de tê-lo visto. Sim, meu amigo, o malandro. Ele estava lá, firme e forte, talvez até bonito (não entendo da beleza masculina), sendo entrevistado por um apresentador qualquer. Não era o Gugu; meu amigo não estava querendo rever a família deixada para trás. Ele estava de fraque, sentado num piano, com uma foto de Viena ao fundo. Era a estrela da noite. Acabara de tocar 12 variações da Eroica, de Beethoven. Posso estar enganado, mas no fundo tenho certeza que era ele, o malandro, meu amigo internado por uso de drogas.
A única droga em que ele era viciado é a mesma que me tem tirado o sono: a música.
2 comentários:
Parece aquele daqueles tempos em que alguém era genial!
Perfeito!
Uma bela declaração de amor!!!!
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