Antes da consumação do fato, tudo fora preparado nos mínimos detalhes. A janela que dava de frente para onde ficariam todos os convidados estava coberta com uma manta azul-turquesa quase lusco-fusco; a porta que se abria para o corredor dos banheiros fora trancada com uma chave que só os dois possuíam, e um sino amarrado a um fio de nylon os avisaria de qualquer aproximação; havia ainda o problema de serem pegos fazendo barulho, mas para isso o DJ fora instruído a colocar o som no talo na exata hora combinada.
Durante a festa, a atitude de ambos indicava que algo diferente estava para acontecer – isso, é claro, se houvesse alguém em condições de ligar os fatos e as evidências. Ela derrubou no chão um copo cheio de refrigerante, num nervosismo visível. Ele jogou fora um limão inteiro, alegando que a casca era muito grossa e não servia para fazer torta, mais irritado do que da vez que seu time perdeu a final do campeonato naquele derby inesquecível. Olhares mais atentos chamariam essa irritação de ansiedade.
22h00 era a hora combinada. Sairia um de cada vez, sem avisar ninguém. Caso um homem perguntasse por que cada um estava saindo, ela diria que precisava usar o banheiro de baixo e ele buscar alguma coisa no carro. Se fosse mulher, ela diria que precisava buscar alguma coisa no carro e ele iria usar o banheiro de baixo porque – iam perguntar o porquê –, enfim, “era preciso”. Tudo fora mesmo planejado.
Ele saiu pela rampa da cozinha. Pé ante pé, desceu pelo bosque até a entrada do condomínio sem olhar para trás. Diante da imensa entrada de vidro, certificou-se de que ninguém estava ouvindo antes de empurrar lateralmente a porta de correr. Pôs antes a cabeça, olhou para todos os lado e só então entrou, num salto, fechando tudo atrás de si. Então, tateando a parede, se arrastou até o ponto de encontro.
Ela saiu pela porta da frente. Acreditava que ninguém suspeitaria se fosse pelo lugar mais óbvio. Uma das amigas perguntou o que ela iria fazer e ouviu a resposta ensaiada. Na descida do bosque ainda deu uma olhada para o salão, só para conferir a amiga sendo agarrada por um colega que iniciara uma brincadeira. Entrou no condomínio pelo hall de entrada. Cumprimentou o porteiro e seguiu fingindo naturalidade até o local combinado.
Da salinha escura ele ouviu o DJ subindo um pouco o volume. Chegara a hora. Precisavam ser rápidos, tudo estava devidamente preparado. Ele pensava nela entrando, ligando a luz e lançando-lhe um sorriso convidativo. Não teve nem tempo de completar o raciocínio quando num clique a porta se abriu. Ela entrou evitando encostar-se ao sino. Fechou a porta sem barulho e virou-se. Estavam na escuridão total, os dois, ali, sem ninguém para recriminá-los ou dizer-lhes o que fazer. Eram uma coisa só, num quarto isolado, com tempo de sobra para fazer tudo aquilo a que se propunham.
Então ela acendeu a luz. Queria que tudo fosse rápido, não podia deixar que ninguém desconfiasse. Estendeu a mão e ele finalmente pôde ver. O mundo pareceu-lhe estranhamente iluminado. Há muito tempo pensava naquilo e intimamente não tinha esperanças de que todo o esquema entre eles combinado pudesse se concretizar. Era muito bom para ser verdade. Mas ela estava ali, só para ele, como se em todos esses anos estive apenas esperando sua mão doce e habilidosa para finalmente se apresentar ao mundo.
Ele esticou a mão até encostá-la. Foi só nesse instante que pôde constatar que ela realmente existia, que não era apenas um fruto da sua imaginação. Sentiu-se dono do mundo com a textura dela em suas mãos. Suava frio e os braços ardiam. As orelhas estavam vermelhas como pimenta e já não lhe havia saliva suficiente para engolir. Finalmente, 38 anos depois, conseguira a bendita figurinha do Everaldo. Diziam as más línguas que a empresa havia esquecido de fabricar. Era o último jogador que faltava para ele completar o álbum da Copa de 70.
Ela roubara o Everaldo das coisas do pai, aquela danadinha. Ai dela se alguém descobrisse. Era capaz de ficar um ano sem poder descer para brincar...
Nenhum comentário:
Postar um comentário