quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Marrom Glacê

Outro dia eu pilotava minha magrela pelas ruas da vila de Santa Ifigênia, na Barreirinha. Lá ainda mora minha vó, e foi onde passei toda minha saudosa e querida infância. Aquelas quadras bem desenhadas e suas ruas esburacadas, entretanto paralelas bem definidas – comum a todos os loteamentos da Cohab –, são um convite ao passei de carro. Você se sente como num jogo de video game, num mapa de batalha naval: A-1: água! C-7: couraçado.
Eis que vejo, numa das tantas ruas com sobrenome Geronazzo, um senhor andarilho. Um velho bem velhinho, já corcunda, coitado. Ele estava sujo e visivelmente fedido. Parecia acabado, exausto, mas não parava com suas andanças. Usava um chapéu marrom à la Ventania, uma calça djeãns surrada (marrom) e um chinelo de pneu . A camiseta estava tão suja e velha que parecia marrom. A pele dele era marrom. Os cabelos marrons. Era tão melancólico que sua alma, com certeza, era marrom.
Pensei em conversar com ele, mas não é muito bom abordar transeuntes introspectivos – muitos deles encontraram o sentido da vida, a verdade absoluta, e enlouqueceram (ou desenlouqueceram, sei lá). Ele andava com o olhar fixo no chão, como que se guiando apenas pelas linhas das bordas das ruas. Nada o fazia parar ou desviar sua atenção. Nem os carros que passavam buzinando, nem os ciclistas que invariavelmente o xingavam por não sair da frente. Quando ele passava por pedestres, estes o olhavam com cara de desdém, até um certo nojo. Parecia bêbado, mas de fato estava muito fedido.
Numa subida, o velho dobrou o corpo de tal forma que parecia querer beijar o chão. Se equilibrou e seguiu em direção ao topo. Eu, veloz e atleta que sou, dei um gás para esperá-lo lá em cima. Com a bike devidamente estacionada e duas garrafinhas de água depois, vinha chegando meu amigo transeunte. Estava eu agora decidido a abordá-lo, perguntar quem era e se precisava de alguma ajuda. Já esperava que ele me pedisse dinheiro para uma passagem de volta, ou de ida, pra algum lugar. Ou mesmo uma moeda pra pinguinha.
Mas nem deu tempo. A uns 50 metros de mim tinha uma escola e, naquele exato instante em que o velho se aproximava, foi dado o sinal de fim da aula. Depois daquela dispersão das crianças, ficaram os, hã, jovens do ensino médio naquele conversê pós-aula. Uns deles, malandrões, se juntaram para, com certeza, zoar com o moribundo. De repente o velho parou, estacou, pa-ra-li-sou de fronte ao colégio. Examinou cada janela, cada porta, cada graminha. Parecia um louco tendo uma crise de excentricidade. A piazada até desistiu da zoação e foram todos embora.
A rua esvaziou. Ficamos só nós, eu e o transeunte (ainda olhando para a fachada da escola), naquela imensa ladeira agora deserta. Decidi que chegara a hora de puxar um papo. Quando cheguei perto, o velho se virou e me olhou como fizera com a escola. Examinou cada parte do meu corpo, cada ruga da minha testa. Fiquei sem ação, assustado. Até que ele tirou a mochila, marrom, das costas e se pôs a procurar algo. Juro que nessa hora pensei em fugir, mas ele tinha serenidade no rosto. Um quê de necessidade.
Tirou uma foto velha, amarelada e com as bordas comidas pelo tempo. Me esticou com a mão tremendo, ansiosa. Olhando para aquela figura, de pronto reconheci a escola. Aquela, ali, na nossa frente. Era um foto daquelas de formatura. A gurizada pulando uma sobre as outras, sorrindo por terminar o colegial. O velho me apontou um rapaz franzino, no canto, com seus 30 e poucos anos e sendo ovacionado pelos alunos. De óculos e pasta na mão, definitivamente era o professor, e aquele mais querido pela turma. Então ele apontou para o peito. Apontava o peito e a foto como quem diz: "este sou eu".
Ele pegou a foto de volta e guardou na mochila. Botou ela nas costas e se virou, cambaleando. Saiu andando mais cabisbaixo do que quando chegou. Muito mais bêbado. Muito mais marrom.

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