segunda-feira, 30 de julho de 2012

Meu deus, é o diabo!

Seria trágico se não fosse cômico. Diz que o diabo, o cão, o cujo, o demo, o pé-redondo, o coisa-ruim, o hermógenes, o tal estava andando pela cidade como uma pessoa qualquer. Não fosse pelos chifres, pelo rabo, pela tez avermelhada e fumegante e pelo cheiro insuportável de enxofre poderiam confundí-lo com um cidadão de bem. Até tentava se adaptar: acenava para os curiosos, dizia amenidades para velhinhas sentadas na pracinha e só não passava a mão na cabeça das crianças porque elas literalmente corriam de medo. De resto seguia tudo na mais absoluta tranquilidade.

Um senhor de coragem acima do normal, coxo de nascimento e capenga de cacoete, aproximou-se do Senhor das Trevas. "Quem é você?", perguntou entre soluços. "Por que você fede mais que minha sogra?" O outro nem respondeu -- não sabia o que era sogra. Até ouvira falar disso em meio ao lamentos das almas penadas que lhe mandavam, mas espécie nenhuma um dia pisou em seus aposentos. Para eles era como se sogra fosse um ser de outro mundo, inventado pelos homens para se absterem ou se abstraírem de alguma culpa.

"Eu não sei o que o senhor quer dizer com isso, sogra, mas eu mesmo me chamo Capeta", respondeu o coisa-ruim. Seu rosto aparentava amigável, muito embora um interlocutor pudesse ver naqueles olhos brancos e profundos uma semelhança indizível com a mulher amada. Ao silêncio do corajoso o diabo emendou: "vim descobrir o que há de tão terrível aqui em cima para que as pessoas que vão até a minha casa se sentirem tão aliviadas quando chegam".

O demônio ouvia coisas verdadeiramente insólitas sobre a Terra. Para ele diziam que era um lugar onde as pessoas destruiam o que lhes restava de amor-próprio ao sucumbir às pressões de uma filosofia pré-concebida. Era um lugar em que as relações interpessoais precisavam ser regidas por um conjunto não-escrito de regras que foram fundadas levando em consideração apenas exceções, como se ninguém pudesse formular sua própria maneira de agir pelo risco de se criar uma anarquia democrática. Verdadeiramente infernal. Pavoroso.

Após minutos de hesitação o senhor de coragem acima do normal começou a falar. Ele naquele instante não estava vivendo sob o regime de anti-picardia que assomava a maioria das pessoas. Pelo contrário: tinha em si a liberdade de quem deliberadamente escolhe o caminho da elevação. Quanto mais alto, mais autonomia. "O Senhor não deveria aparecer por essas bandas", disse, sôfrego, em meio a muita saliva. "As pessoas não gostam de você. Não gostam da imagem que fizeram de você. Aqui ser diabo já saiu de moda. Quem arrisca contrariar as normas da sociedade é taxado de sórdido, vil, abjeto. Há um padrão que deve ser seguido -- qualquer desvio é tomado como insurreição e deve ser sobrestado de imediato. Fuja, fuja enquanto é tempo. Quem não tem para onde ir faz o que pode para negligenciar, torcendo para que isso não seja também considerado ultraje. Eventualmente será".

Com o rabo entre as pernas e os dois chifres encolhidos lúcifer se escafedeu.

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